“A esperança é uma miragem” nos campos para deslocados no Nordeste da Síria

Os cortes de financiamento ao sistema de encaminhamentos médicos custeado pela OMS aumentaram os riscos para as mais de 40 000 pessoas que vivem em campos de deslocados e de detenção no Nordeste da Síria

Campo de Al-Hol, na Síria
©️ MSF, 2023

As mais de 40 000 pessoas que vivem em campos de deslocados e de detenção no Nordeste da Síria vivem em grave risco, desde que foram feitos cortes de financiamento ao sistema de encaminhamentos médicos custeado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Os serviços de saúde especializados estão apenas disponíveis fora dos campos. No ano passado, a Médicos Sem Fronteiras referenciou 1 446 pacientes para encaminhamentos externos. No entanto, pelo menos 22 por cento foram recusados, por indisponibilidade dos serviços necessários ou devido a restrições de segurança.

As palavras dos nossos pacientes pintam perfeitamente a situação.

 

Paciente 1 (mulher):

 

Agarro-me à fé, rezando por força. Mas a esperança diminui, e as sombras expandem-se”

 

No final de 2018, cheguei ao campo de Al-Hol, após escapar da batalha angustiante em Baghoz. Tal como as minhas companheiras, vejo-me encurralada num limbo desconcertante – um lugar onde o futuro permanece envolto em incerteza.

Há aproximadamente um ano, comecei a ter convulsões frequentes, acompanhadas de uma paralisia do membro esquerdo e distúrbios de visão.

Em busca de assistência médica, visitei a instalação da MSF. Após uma minuciosa avaliação feita pela equipa, foi determinado que eu precisava de cuidados especializados além dos que a instalação poderia fornecer. Decidiram que eu precisava de ser encaminhada para Hassakeh, para ver um neurologista, já que os serviços de neurologia não estavam disponíveis dentro da instalação da MSF ou em qualquer outro lugar no campo.

E, no entanto, aqui estou, um ano depois, presa neste limbo cruel. O meu caso é rotulado como um “caso frio”, e o neurologista permanece fora de alcance. Os analgésicos da clínica da MSF não me conseguem dar consolo.

Tenho suplicado para me encaminharem, mas o coro ecoa: “Os serviços não estão disponíveis”. A minha saúde deteriora-se, e os meus filhos – ainda jovens – dependem de mim. Temo que um dia eu não acorde, deixando-os à deriva.

Estou ciente agora de que os encaminhamentos para Hassakeh não são mais uma opção viável. Agarro-me à fé, rezando por força. Mas a esperança diminui, e as sombras expandem-se. Os meus filhos merecem mais do que este destino incerto.

 

Vista do campo de Al-Hol a partir das instalações da MSF no campo no Nordeste da Síria
Vista do campo de Al-Hol, no Nordeste da Síria, a partir das instalações da MSF no campo. ©️ MSF, 2023

 

Paciente 2 (mulher):

 

O campo de Al-Hol é uma tela desolada pintada com violência, desespero e os golpes cruéis da existência”

 

Cheguei em 2018 à lúgubre sombra do campo de Al-Hol, com o coração pesado de dor. Perdi dois filhos para os céus impiedosos de Baghoz.

Os outros dois foram detidos pelas forças de segurança das Forças Democráticas da Síria, o silêncio deles ecoa de forma assombrosa na minha alma.

O campo de Al-Hol é uma tela desolada pintada com violência, desespero e os golpes cruéis da existência. Aqui, a vida pende por um fio frágil, e a esperança é uma miragem distante.

Tenho lutado contra doenças cardiovasculares há vários anos, o que tem exacerbado o meu sofrimento no campo. Obter os medicamentos necessários de forma oportuna tem sido um desafio significativo. Alguns medicamentos requerem encaminhamentos para o hospital de Hassakeh para consultas e tratamento regular.

A medicação, a minha linha de vida, escapa-me. O caminho para a cura é eclipsado pela burocracia, cortes de financiamento e indiferença. Há duas semanas, a equipa da MSF, valente mas impotente, assistiu enquanto eu vacilava no precipício da morte. Foram-me negados encaminhamentos urgentes para Hasaka, e as portas do hospital de campanha permanecem fechadas. Eu precisava de ser hospitalizada para evitar consequências fatais, mas fui enviada de volta,  num mar de desespero.

Há um dia, a equipa da MSF referiu-me novamente e acompanhou-me até o Crescente Vermelho Curdo. Apesar da minha condição aguda, mais uma vez, o meu encaminhamento foi negado, e os hospitais de campanha dentro do campo não puderam admitir o meu caso.

Agora estou sem medicação há duas semanas, e o meu corpo anseia por salvação. Saber que um derrame me pode matar a qualquer momento corrói a minha determinação. A luz fraca da esperança treme, mas eu agarro-a ferozmente, pois anseio, não pela minha própria sobrevivência, mas para ver os meus filhos mais uma vez – para abraçá-los.

 

Paciente 3 (mulher):

 

Desesperada e impotente, dirijo-me a todas as almas compassivas preocupadas com Al-Hol”

 

Neste campo, nos últimos cinco anos, enfrentámos raides implacáveis, retiraram-nos os nossos filhos e suportámos a escassez de ajuda humanitária. As condições de vida tornaram-se insuportáveis e lançaram-nos num caos absoluto.

Lutei contra aflições dentárias por mais de dois anos, e tornei-me incapaz de comer. Sujeitei-me a uma dor incessante. Lamentavelmente, as opções de tratamento dentro do campo permanecem elusivas. As minhas repetidas visitas à clínica da MSF foram uma tentativa de garantir um encaminhamento para o Hospital de Hassakeh, mas a minha saída foi-me sempre rejeitada. Nem os analgésicos mais forte me fornecem alívio.

Em outubro de 2023, uma luz de esperança surgiu quando meu o requerimento foi finalmente aceite. Estava programado receber tratamento em Hassakeh uma vez por semana. Inicialmente, as visitas trouxeram alívio – a dor diminuiu e eu podia comer sem depender de medicamentos potentes para a dor.

No entanto, o meu otimismo foi de curta duração. Deram-me notícias devastadoras durante a minha última visita em março de 2024: as restrições de financiamento ditaram que essa seria a minha última vez no Hospital de Hassakeh. Agora, com o meu tratamento em metade, vejo-me incapaz de continuar. A dor voltou, e os analgésicos não oferecem consolo.

Desesperada e impotente, dirijo-me a todas as almas compassivas preocupadas com Al-Hol, peço por favor, ajudem-nos. Este pesadelo tem que parar.

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