A violência crónica continua a alimentar uma crise esquecida na província de Ituri

Desde o início de 2023, o território de Djugu, na província de Ituri, República Democrática do Congo (RDC), tem sido assolado por confrontos armados e violência intercomunitária, forçando cerca de 156 000 pessoas a fugir de casa

© MSF/Michel Lunanga

Estalidos de disparos no sopé de uma colina a dois quilómetros de distância. O pânico instala-se no hospital de Drodro. Já haviam sido reportados confrontos numa estrada a Norte, também a poucos quilómetros de distância.

Os sons estão cada vez mais próximos. Traumatizados por anos e anos de violência crónica, os pacientes e os profissionais do hospital agem por reflexo e fogem. Para longe do hospital, mesmo que isso signifique interromper o tratamento.

Rapidamente, todos reúnem os pertences. As mães cingem os filhos ao corpo com os tecidos que encontram, depois agarram o que conseguem e correm para a saída.

Em menos de 30 minutos, o hospital de Drodro, com 100 camas, fica vazio. As portas das alas estão fechadas, e o silêncio pesa.

Alguns pacientes e respetivos acompanhantes conseguiram escapar prontamente, antes das estradas se tornarem demasiado perigosas para viajar, mas houve outros que não tiveram tanta sorte. Foram obrigados a voltar para trás, em direção ao hospital. Felizmente, um condutor de ambulância conseguiu encontrá-los para lhes dar boleia de volta.

Novamente no hospital de Drodro, as pessoas refugiam-se numa sala. A tensão é palpável. O gerador foi desligado, para que se consiga ouvir nitidamente se os tiros se estão, ou não, a aproximar. Por agora, o único som é o de crianças a chorar.

 

 

Os ciclos recorrentes de violência traumatizaram a população

Violência RDC - Ituri

“Estava na cama de hospital com o meu bebé quando as outras mães vieram ter connosco e disseram: ‘temos de fugir, ouvimos tiros’”, recorda Joecie, mãe de Salomon, um bebé com 17 meses que está a receber tratamento para desnutrição grave e anemia. “As pessoas corriam em pânico. Eu, sem pensar duas vezes, envolvi o meu bebé com uns cobertores e fugi. Mas com o pânico, esqueci-me de algumas coisas: o historial médico dele e os meus utensílios de cozinha”.

Contudo, Joecie teve de voltar ao hospital com o filho mais tarde nessa mesma noite. “Ele estava demasiado doente”, explica. “Tinha febre e não tínhamos nada para comer. Não tive escolha senão voltar para trás. Foi uma noite difícil – estava em pânico e mal consegui dormir.”

A violência crónica deixou as pessoas nesta área com profundas marcas psicológicas, que perdurarão nas próximas gerações. Muitas têm medo de aceder a instalações médicas, vendo-as como potenciais alvos de ataques. Algumas só procuram cuidados em situações de extrema urgência.

 

Estava na cama de hospital com o meu bebé quando as outras mães vieram ter connosco e disseram: ‘temos de fugir, ouvimos tiros’” – Joecie, mãe de Salomon, um bebé com 17 meses.

 

“As pessoas vivem este conflito há anos, várias gerações enfrentaram-no, com repetidas vagas de deslocações e poucas perspetivas de futuro”, frisa a responsável de saúde mental da MSF, Grâce Longa Mugisa. “São constantemente forçadas a reviver os massacres dos vizinhos e membros da família. É difícil pensar logicamente.”

Esta é a terceira vez, desde o início do ano, que instalações médicas na zona de saúde de Drodro tiveram de ser evacuadas devido a confrontos nas proximidades.

“Trabalho com a MSF desde 2015, em vários países, e nunca passei por este tipo de situação – nunca vi um hospital ficar deserto desta maneira”, sublinha a coordenadora de atividades médicas da MSF em Drodro, Kelly Tsambou. “Quando os pacientes fogem, o que é que podemos fazer? Não os podemos parar. Todos deviam poder sentir-se seguros nas instalações médicas. Os hospitais são normalmente usados pela população civil como um local de refúgio durante conflitos, mas isso não acontece aqui.”

 

A insegurança afeta diretamente o acesso a cuidados de saúde

2. Violência RDC - Ituri

Neste momento, apenas oito das 16 unidades de saúde em Drodro estão a funcionar. Para continuar a prestar apoio de forma imparcial, a MSF está a desenvolver esforços para responder de modo equitativo às necessidades. No entanto, a violência crónica e as deslocações repetidas estão a perturbar as atividades médicas.

As respostas da MSF consistiram em reforçar a distribuição de recursos em várias instalações de saúde, com o objetivo de facilitar o acesso a cuidados médicos ao maior número de pessoas possível e de prestar apoio ao Ministério da Saúde.

Desde que a MSF chegou à região em 2019, as nossas equipas têm lidado continuamente com estes ciclos de violência”, explica o coordenador-geral do projeto, Soumana Ayouba Maiga. “Mas face à última ressurgência, temos tido de nos adaptar, aumentando os recursos em certas instalações médicas, para reforçar os serviços de saúde e levá-los para mais perto das comunidades.”

Por exemplo, a clínica móvel estabelecida no campo para pessoas deslocadas em Rho foi pensada originalmente para providenciar cuidados primários e encaminhar pacientes com casos mais complexos para o hospital de Drodro. Porém, desde o início do ano, a população deste campo, onde há várias organizações humanitárias a trabalhar, quase que duplicou – de 35 000 para quase 70 000 pessoas, no total. Para responder, a MSF transformou a clínica num posto avançado de saúde para reforçar as capacidades médicas.

 

“Desde que a MSF chegou à região em 2019, as nossas equipas têm lidado continuamente com estes ciclos de violência” – Soumana Ayouba Maiga, coordenador-geral do projeto.

 

As equipas da MSF estão também a reabilitar o centro de saúde de Blukwa’Mbi – onde um elevado número de pessoas deslocadas vive com famílias de acolhimento – para transformá-lo num centro com capacidades para fornecer cuidados especializados. “A construção do bloco operatório, com uma rede elétrica alimentada por energia solar, permitirá às equipas realizar procedimentos complexos, como cesarianas em grávidas”, esclarece Maiga. “Queremos providenciar um acesso a cuidados mais especializados a pessoas que não conseguem chegar ao hospital de Drodro.”

 

Graves necessidades humanitárias requerem uma intensificação da assistência

3. Violência RDC - Ituri

Constantemente ignoradas pelos órgãos de comunicação social e sem qualquer atenção internacional ou política, as 1.7 milhões de pessoas deslocadas na província de Ituri estão a necessitar desesperadamente de assistência humanitária: comida, água potável, infraestruturas de saneamento adequadas, abrigos, educação e cuidados médicos.

Muitas pessoas sentem que foram abandonadas e que têm muito pouco do que precisam para sobreviver, especialmente itens alimentares – a insegurança crónica faz com que seja impossível cultivarem os campos e colher os alimentos que cultivam.

O que me preocupa mesmo é o acesso a comida”, frisa Micheline. “A maioria de nós não come todos os dias, nem mesmo as crianças. Não estamos na época de colheitas, então não há nada. Nem sequer há água potável nas proximidades”. Conhecida na comunidade como a ‘líder das mães’, Micheline recebeu e acolheu 10 pessoas deslocadas em casa, onde já viviam oito pessoas da família.

Desde o início de 2023, 156 000 pessoas foram forçadas a deslocar-se de casa; juntam-se a um total de 700 000 no território e 1.7 milhão na província de Ituri. Enquanto algumas encontram refúgio em campos para pessoas deslocadas internamente, a maioria abriga-se com famílias que as recebem. É difícil calcular o número total de pessoas deslocadas, devido à volatilidade do conflito e às movimentações constantes da população.

Em algumas áreas da zona de saúde de Drodro, as equipas da MSF estão quase sozinhas a prestar apoio médico às pessoas. As necessidades humanitárias são enormes nestas comunidades e, por isso, é necessário reforçar a assistência de maneira neutra e imparcial.

A situação que a MSF está a testemunhar é um mero reflexo da realidade do território de Djugu – em algumas áreas, os serviços de saúde são ainda mais difíceis de alcançar.

 

Em colaboração com o Ministério da Saúde, as equipas da MSF providenciam cuidados médicos no hospital de Drodro, assim como em outros dois centros de saúde, dois postos avançados de saúde e seis pontos de saúde comunitários na zona de saúde de Drodro.

As equipas prestam cuidados médicos gerais, com ênfase em cuidados pediátricos, incluindo tratamento para desnutrição, malária e infeções respiratórias. As equipas fornecem também apoio à saúde mental, serviços de planeamento familiar e cuidados para sobreviventes de violência sexual.

Desde o início de 2023, as equipas da MSF em Drodro providenciaram 25 630 consultas médicas, forneceram tratamento para desnutrição a 850 crianças, realizaram 435 sessões de saúde mental e prestaram apoio a 165 sobreviventes de violência sexual.

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