“As paredes e janelas tremiam” – Profissional da MSF no Sudão relata tensão durante conflitos

A coordenadora de advogacia da Médicos Sem Fronteiras (MSF), Camille Marquis, relata o que viu e ouviu durante os intensos conflitos em curso no Sudão

© MSF/Camille Marquis, 2023

“No Sábado, quando ouvi os primeiros tiros – deviam ser 08h30 da manhã – estava a tomar o pequeno almoço, a começar o que supostamente seria o meu último dia em Cartum. Malas prontas, frigorífico e armários esvaziados, faltavam apenas umas horas para apanhar o voo para casa, depois de um ano no Sudão.

Corremos todos para a sala de pânico na cave do alojamento. Passei o dia nessa sala, sentada no chão com mais dez colegas, sobressaltada pelos sons dos tiroteios, de aviões a voar perto do solo e dos estrondos de ataques áereos: tudo ecoava naquele espaço, e as paredes e janelas tremiam. O silêncio, sempre de pouca dura, era imediatamente seguido pelo som de explosões.

Na primeira noite, a dormir no chão rodeada de colegas, pensei que já devia estar no aeroporto à espera do meu voo para casa; pensei também nas pessoas que lá ficaram dentro encurraladas, por causa dos tiroteios no local. Podia ter sido uma dessas pessoas. Algumas ficaram feridas, e ainda não conseguiram obter o tratamento que necessitam. Pensei também nos meus colegas sudaneses e nas pessoas que vivem em Cartum: ao contrário de mim, não tiveram a hipótese de dormir num abrigo, com rações alimentares de emergência e água. Hoje* é o sexto dia de combates nas ruas desta cidade densamente populada, com cerca de 10 milhões de habitantes: as pessoas estão a ficar sem comida, água e combustível, e a correr grandes riscos para obter provisões em lojas que estão também a enfrentar um período de escassez.

Ao ouvir toda a destruição lá fora, ao ler sobre todas as vidas perdidas – histórias de pessoas feridas e doentes que não conseguem chegar a um hospital ou clínica funcional na capital do país – fico incrivelmente triste pelo Sudão e pelos sudaneses, que ficaram encurralados entre dois grupos de forças armadas do próprio país. As pessoas já estão com dificuldades em obter comida, água, medicamentos e cuidados de saúde – e estamos apenas a viver os primeiros dias. As consequências destes conflitos para as já elevadas necessidades humanitárias serão absolutamente dramáticas.

Passei um ano a monitorizar as necessidades humanitárias no Sudão e a documentar o impacto da fraca resposta a essas necessidades na saúde e nutrição dos sudaneses, especialmente das crianças. Tínhamos acabado de publicar uma nota informativa a alertar para as graves necessidades das pessoas a viver em Darfur Ocidental e, também, a pedir a entidades humanitárias e a doadores que aumentassem a resposta, de forma a apoiar o sistema de saúde do Sudão, que está em colapso.

Dos meus colegas atualmente abrigados em Cartum, estava planeado que dois profissionais de enfermagem voassem para El Geneina, em Darfur Ocidental, para trabalhar no hospital apoiado pela MSF e prestar tratamento a crianças gravemente desnutridas. Por causa do conflito, podem não conseguir voltar para lá tão cedo e prestar apoio humanitário. Além disso, o psicólogo da MSF que trabalha no hospital de El Geneina também não conseguiu sair de Cartum.

As equipas em Darfur Ocidental reportam um número anormalmente baixo de pacientes nas enfermarias – provavelmente um sinal de que as pessoas estão com medo de sair de casa e vir até ao hospital. Isto é preocupante, visto que em El Geneina o período mais grave da desnutrição começa em maio.

Se os trabalhadores humanitários e de saúde não tiverem condições para continuar a trabalhar em segurança – para fornecer assistência médica e nutricional, mas também assistência alimentar – e se os pacientes não conseguirem chegar a um hospital sem medo para receber tratamento, milhões de crianças e adultos em situação de vulnerabilidade no Sudão enfrentarão graves consequências de saúde.

Antes deste conflito, já um terço da população do Sudão se encontrava em situação de insegurança alimentar. E tudo isto nos leva a crer que a situação possa piorar em todo o país.”

 

*Testemunho escrito a 20 de abril de 2023.

 

A MSF  continua a fornecer cuidados médicos no Sudão sempre que possível. No entanto, muitos trabalhadores humanitários não se conseguem deslocar, devido aos intensos conflitos na capital, Cartum, e em todo o país. A segurança dos profissionais e pacientes da MSF é a principal prioridade, e está a ser prestado apoio às equipas, conforme as circunstâncias específicas. Instamos todas as partes em conflito a garantirem a segurança das equipas médicas, dos pacientes e das instalações de saúde, e que permitam a passagem segura de ambulâncias, profissionais de saúde e pessoas que procuram cuidados de saúde. Nos últimos anos, a MSF teve projetos nos Estados de Cartum, Gedaref, Kassala, Nilo Azul, Nilo Branco, Darfur do Norte, Darfur Oriental, Darfur Ocidental, Darfur do Sul e Darfur Central, com equipas de emergência a iniciar atividades noutros estados, conforme necessário.

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