Campos superlotados no nordeste da Síria já sentem efeitos indiretos da COVID-19

Número de clínicas de atenção primária caiu de 24 para 5 no acampamento Al-Hol desde maio

Campos superlotados no nordeste da Síria já sentem efeitos indiretos da COVID-19

À medida que o número de pacientes com COVID-19 cresce no nordeste da Síria, a pandemia está tendo um impacto indireto sobre outros serviços de saúde em uma região onde cerca de 700 mil pessoas foram deslocadas de suas casas.

Gerente de emergência de MSF para a Síria, Will Turner descreve a situação em toda a região e, em especial, no campo de Al-Hol para pessoas deslocadas. Lá, mais de 65 mil pessoas, a maioria mulheres e crianças, estão detidas há quase dois anos, desde que forças democráticas sírias assumiram o último território sob controle do grupo Estado Islâmico.

O que está acontecendo no nordeste da Síria agora?

“Toda a região foi impactada pelo início da pandemia. Mais de 700 mil pessoas estão deslocadas de suas casas, a maioria quase totalmente dependente de assistência humanitária. Elas estão espalhadas pelas províncias de Raqqa, Hassakeh e Deir Ez-zor, bem como ao redor da cidade de Kobane / Ayn Al-Arab, na província oriental de Aleppo. Muitos dos deslocados vivem em ambientes superlotados, incluindo campos oficiais, acampamentos informais e assentamentos improvisados ​​em escolas e mercados.

Como grande parte da Síria, esta área foi devastada por mais de nove anos de conflito. O período de insegurança mais recente ocorreu em outubro de 2019, quando uma operação militar apoiada pela Turquia foi realizada ao norte. O conflito levou a deslocamentos e piorou ainda mais a frágil infraestrutura da região. Além disso, MSF teve que reduzir suas atividades por vários meses. Hoje, muitas unidades de saúde estão fechadas e as que permanecem abertas lutam para responder às necessidades das pessoas.”

Qual é a situação atual do abastecimento de água?

“Atualmente, existe uma grande crise com a água. A estação de Al Halouk fornece água para cerca de 480 mil pessoas na província de Hassakeh, incluindo Al-Hol e outros campos para pessoas deslocadas. Ela foi seriamente danificada em outubro no ano passado, quando o abastecimento foi cortado para toda a região. Embora tenha sido consertada, o abastecimento foi interrompido ao longo de 2020. A escassez generalizada nas últimas duas semanas levou a protestos e inquietação.

Não podemos acessar Al Halouk no momento, então estamos apoiando as autoridades locais com uma instalação de água recente chamada Al Himme, ao norte da cidade de Hassakeh. Estamos doando equipamentos de laboratório e produtos químicos necessários para tratar a água para que possa ser bebida e distribuída com segurança. Quando estiver totalmente operacional, estima-se que Al Himme possa fornecer 30% das necessidades de água da região.

Estamos preocupados que possa haver graves implicações para a saúde pública. O acesso à água potável é essencial em qualquer emergência. A escassez pode significar um desastre em face da COVID-19.”

O que está acontecendo com a COVID-19?

“Não há dúvida de que estamos vendo o aumento no número de casos de COVID-19 no nordeste da Síria. A partir de 24 de agosto, foram 394 casos confirmados – quase um quinto entre os trabalhadores de saúde. O teste é limitado, mas dos testes realizados cerca da metade retorna com resultado positivo. Isso sugere que as taxas de transmissão são altas e que muito mais testes são necessários.

Pelo que sabemos, as cidades de Hassakeh e Qamishli são os epicentros atuais. Estamos preocupados que isso possa logo mudar para a cidade de Raqqa, outra área densamente povoada com muitas pessoas deslocadas, e ainda se recuperando da destruição causada pela guerra. Os serviços de saúde são escassos e o acesso à água e ao saneamento é precário.

Existem leitos hospitalares limitados para isolamento ou terapia intensiva na região. Conforme a COVID-19 se espalha, o governo local e as agências humanitárias planejam disponibilizar mais leitos em diferentes locais.

MSF está apoiando o único hospital para COVID-19 dedicado no nordeste da Síria, na periferia da cidade de Hassakeh, que também pode atender alguns casos de terapia intensiva. Como parte da resposta da força-tarefa humanitária à COVID-19, supervisionada pelas autoridades de saúde locais, também fornecemos treinamento em toda a região e ajudamos a renovar uma ala de isolamento de 48 leitos no Hospital Nacional de Hassakeh, o maior da região.”

Qual é o impacto da COVID-19 nos profissionais de saúde?

“Estamos particularmente preocupados com o alto índice de infecção entre os profissionais de saúde. Em primeiro lugar, é claro, é o impacto sobre eles e suas famílias. Então, vemos um impacto indireto em um sistema de saúde já extremamente frágil. Não somente essa equipe não pode trabalhar, mas outras pessoas que estiveram em contato com eles também precisam ser colocadas em quarentena. O resultado é que as unidades de saúde com serviços já limitados tiveram que fechar completamente.

Até recentemente, a maioria dos profissionais de saúde trabalhava em várias instalações diferentes no nordeste da Síria. Dos funcionários com teste positivo para COVID-19, a maioria já havia trabalhado em serviços públicos de saúde e com agências humanitárias, inclusive em clínicas em campos como Al-Hol. Em resposta ao aumento das taxas de infecção, as autoridades criaram novos regulamentos que proíbem os funcionários de trabalhar em mais de um centro de saúde.”

Você pode descrever o acampamento Al-Hol?

“O campo de Al-Hol, na província de Hassakeh, perto da fronteira com o Iraque, é o maior campo do nordeste da Síria. Hoje, 65.400 pessoas estão detidas lá – o maior número desde as batalhas finais entre o Estado Islâmico (EI) e as Forças Democráticas da Síria no início de 2019. Mais de 90% dos residentes no campo são mulheres e crianças; dois terços têm menos de 18 anos.

Al Hol é um “campo fechado”, o que significa que as pessoas não podem entrar e sair livremente. Cercado com arame farpado, o campo é altamente seguro e suas entradas fortemente vigiadas pelas forças de segurança. O acampamento está superlotado, com uma média de sete pessoas espremidas em tendas de tamanho modesto. Em alguns lugares, várias famílias estão amontoadas em espaços comuns.

As restrições aos movimentos de pessoas, já rígidas antes da COVID-19, são ainda maiores com a pandemia. Para muitas pessoas é impossível deixar o acampamento, mesmo por curtos períodos.

A maioria dos habitantes do campo, de origem síria ou iraquiana, vive no campo principal. Depois, há o ‘Anexo’. Nesta área separada e ainda mais protegida, quase 10 mil cidadãos de “outros países” adoecem, quase inteiramente negligenciados. Alguns governos e agências humanitárias relutam em fornecer serviços no ‘Anexo’ por causa das afiliações que os detidos têm.”

Quais cuidados de saúde estão disponíveis no acampamento Al-Hol?

“No momento, quase não há serviços de saúde disponíveis, pois muitas unidades fecharam como resultado dos efeitos indiretos da COVID-19. As consequências são devastadoras. Em apenas uma semana de agosto, sete crianças morreram, todas com menos de cinco anos. Ouvimos relatos horríveis de suas mães indo de clínica em clínica em uma busca desesperada por algum lugar que estivesse aberto.

Em maio, havia 24 clínicas de atenção primária no acampamento; no início de agosto, eram apenas 15. No momento, somente cinco dessas clínicas estão operacionais, incluindo a clínica de MSF no ‘Anexo’. Como pudemos reabri-la no final de julho, recebemos mais de mil pacientes. Em todo o campo, também administramos um programa de tratamento de feridas baseado em barracas para as pessoas que não conseguem chegar às clínicas. Existem três hospitais de campanha, mas nenhum está totalmente funcional. Até o fim da última semana não havia atendimento médico de emergência disponível no acampamento principal. Felizmente, alguns serviços foram reiniciados. Mas não está claro por quanto tempo isso pode ser sustentado, dadas as altas taxas de infecção entre as equipes de saúde. E como a COVID-19 impacta os cuidados de saúde em toda a região, as opções de encaminhamento tendem a diminuir.

Existe um surto de diarreia em curso e as crianças são particularmente vulneráveis. Muitas ficam desnutridas. Em nossos centros de alimentação terapêutica, quase 80% dos nossos pacientes com menos de 5 anos de idade têm sintomas agudos de diarreia aquosa. As admissões em nosso centro para pacientes internados aumentaram 71% em julho, além disso vimos 157 crianças com desnutrição em regime de ambulatório. Água limpa e higiene são prioridades absolutas, ainda mais agora em um verão escaldante. Em julho, entregamos 15,2 milhões de litros de água clorada e tratamos mais de 69,3 milhões de litros para outros distribuírem.”

Existe o risco de um surto de COVID-19 em Al-Hol?

“Acabamos de ouvir sobre o primeiro caso confirmado de COVID-19 entre os residentes de Al-Hol. Estamos preocupados com o que vai acontecer. O campo não está bem preparado para um surto de COVID-19. Uma instalação de isolamento foi construída, mas não está pronta para uso. Não tem pessoal treinado suficiente e carece de infraestrutura básica de água e higiene e adequadas medidas de prevenção e controle de infecções. Também há problemas com medicamentos e equipamentos médicos, incluindo suporte de oxigênio.

Nossas equipes identificaram 1.900 pessoas em todo o acampamento que são particularmente vulneráveis ​​à COVID-19, muitas delas portadoras de doenças não transmissíveis, como diabetes, hipertensão, asma ou problemas cardíacos. Estamos fazendo tudo o que podemos para fornecer-lhes os medicamentos de que precisam, bem como sabonetes e outros produtos essenciais. Isso é especialmente importante porque elas não podem sair para comprá-los.

MSF tem trabalhado para fornecer mensagens direcionadas de conscientização da saúde sobre como impedir que a COVID 19 se espalhe, mas é desafiador pedir a pessoas que vivem tão juntas que tomem medidas impossíveis, como o distanciamento físico.”

Deve haver mais assistência humanitária?

“Sim. Isso requer um esforço coletivo. Como MSF, estamos tentando atender ao maior número possível de necessidades das pessoas e apoiar o trabalho de outras organizações. Mas, muito mais atenção e compromissos são necessários. Áreas como o ‘Anexo’ foram quase abandonados pelo mundo. Independentemente da percepção das afiliações das pessoas, o acesso a médicos e à assistência humanitária são direitos básicos.

Mesmo com nosso trabalho em Al-Hol e a resposta mais ampla à COVID-19 no nordeste da Síria, continuamos a apoiar o acesso a cuidados de saúde primários e secundários em Raqqa e atividades de vacinação em Kobane / Ayn Al Arab. Nós também continuamos a avaliar as necessidades de saúde das pessoas que vivem em áreas remotas, social ou economicamente excluídas, assentamentos informais e outros acampamentos.”

 

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