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Aos 39 anos, Nancy Costa teve um AVC que deixou sequelas, comprometendo o lado direito do seu corpo. Em seguida, ela descobriu um aneurisma no coração. Nenhum médico consultado nesse momento sabia explicar a causa dos problemas. Depois de duas semanas de muita investigação e de desespero provocado pelo desconhecimento, uma médica perguntou a Nancy sua cidade de origem. Quando ela informou que veio do interior de Minas Gerais, a médica pediu um exame para pesquisar a Doença de Chagas. O resultado deu positivo.
Histórias como a de Nancy, que hoje preside a Associação Rio Chagas de pessoas afetadas pela doença, são corriqueiras. Um diagnóstico oportuno seguido de tratamento precoce poderia ter evitado o AVC e a cardiopatia, mas geralmente a pessoa que tem doença de Chagas descobre sua condição muitos anos e até décadas depois da infecção, quando já existem danos mais graves à saúde.
Quase ninguém sabe, mas 8 entre 10 pessoas infectadas não têm acesso a diagnóstico e tratamento para a doença de Chagas. A negligência é tanta, no Brasil e no mundo, que até os dados sobre o número de infectados são baseados somente em estimativas: no Brasil elas vão de 1,9 a 4,6 milhões e no mundo chega a 8 milhões . A Organização Mundial da Saúde também estima que mais de 70 milhões de pessoas no mundo estão em risco de ser infectadas.
A Doença de Chagas é silenciosa. Os sintomas, quando aparentes, são muito similares ao de outras doenças. Mas na fase crônica, cerca de 30% a 40% das pessoas terão algum tipo de dano cardíaco ou no sistema digestivo. Ter acesso ao diagnóstico oportuno e ao tratamento é a única forma de evitar as sequelas crônicas da doença.
Porém, o tema não tem destaque nas políticas públicas dos países afetados, principalmente porque atinge majoritariamente pessoas vivendo em situação de pobreza. O desconhecimento gera ainda efeitos sociais perversos, como o estigma associado às pessoas afetadas.
Ainda associamos a doença de Chagas ao passado e a zonas rurais, mas há bastante tempo ela vem se urbanizando. O Brasil teve expressivos avanços no controle do vetor – o inseto transmissor, conhecido popularmente como barbeiro. Porém, além do contato direto com as fezes do inseto infectado, existem outras formas de transmissão relevantes: a ingestão de alimentos contaminados com essas fezes, a transmissão na transfusão de sangue, o transplante de órgãos e a transmissão congênita.
Para que a negligência seja superada, é preciso, em primeiro lugar, que o diagnóstico e o tratamento sejam incorporados na atenção básica de saúde e estejam acessíveis. Muitas vezes os profissionais de saúde não suspeitam da infecção porque não existem normativas que orientem, tanto eles quanto os gestores, sobre as condutas a serem seguidas. Depois, é necessário que o tratamento de pacientes em todas as fases da doença se torne uma realidade, seguindo a recomendação feita pela OMS em 2010.
Ainda hoje, porém, a notificação ao Ministério da Saúde é obrigatória somente para os casos na fase aguda. Falta a publicação de um Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Doença de Chagas – o documento está em elaboração pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), com previsão de publicação neste ano. É um passo essencial para garantir avanços ao guiar e respaldar a atuação dos médicos.
Médicos Sem Fronteiras (MSF) prestou assistência médica a pessoas afetadas pela Doença de Chagas entre 1999 e 2016, em países como Nicarágua, Guatemala, Colômbia, Bolívia, Paraguai, Itália e México. MSF ofereceu diagnóstico a mais de 117 mil pessoas, das quais 11 mil apresentaram a infecção e cerca de 9 mil receberam o tratamento. O tratamento existente – embora não sendo ideal – obteve bons resultados, chegando a taxas de cura superiores a 90% em pacientes na fase crônica na América Central. O trabalho provou que os pacientes com a forma crônica indeterminada podem e devem ser tratados.
As pessoas afetadas pela Doença de Chagas vivem um ciclo de negligência, abandonadas pelo poder público, vistas por ele como uma geração perdida e tendo negado sistematicamente o seu direito de saber que têm a doença. Mudar esse quadro requer políticas públicas integradas e protocolos claros para que se amplie o acesso ao diagnóstico e ao tratamento na atenção básica, no Brasil e em todos os países endêmicos.
Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo
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