Como a MSF está a melhorar o acesso a cuidados de aborto seguro em Moçambique

“Em Moçambique temos uma lei que defende que se pode fazer um aborto. Acho que não temos de ter vergonha de o fazer”, defende Maria, paciente da MSF

Aborto em Moçambique
© Miora Rajaonary

Na Beira, uma cidade na costa central de Moçambique, a Médicos Sem Fronteiras (MSF) está a apoiar a ligação entre comunidades com difícil acesso a cuidados de aborto seguro e outros serviços de saúde sexual e reprodutiva. Moçambique tem uma das leis de interrupção voluntária da gravidez mais liberais de África, que permite o aborto durante as primeiras 12 semanas de gravidez, e até às 24 semanas em algumas circunstâncias limitadas, incluindo a existência de anomalias fetais.

Embora o aborto seja legal desde 2014, muitas pessoas ainda enfrentam obstáculos no acesso a estes cuidados, incluindo o estigma, desinformação e corrupção, como a cobrança por serviços que deveriam ser gratuitos. Na Beira, a MSF trabalha há quase uma década em vários programas em parceria com as comunidades e funcionários do Ministério da Saúde de Moçambique, de modo a superar barreiras, fornecer informações precisas sobre saúde e melhorar o acesso a cuidados de aborto seguro. A prioridade da MSF é chegar às comunidades que são frequentemente negligenciadas pelo Sistema Nacional de Saúde ou que evitam procurar cuidados de saúde devido ao medo do estigma ou da discriminação, incluindo profissionais do sexo, adolescentes, pessoas transexuais e homens que fazem sexo com homens.

 

 

Trabalhar com comunidades para ajudar a quebrar barreiras a cuidados de saúde

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Profissionais que trabalham com a equipa da MSF fazem uma ação de consciencialização sobre os serviços de assistência ao aborto seguro. © Miora Rajaonary, 2023

A abordagem da MSF é centrada na comunidade e liderada por educadores de pares, com o objetivo de criar ambientes seguros e de confiança onde todas as pessoas se sintam confortáveis ​​para aceder aos cuidados de saúde que necessitam. Fornecemos atendimento direto e educação em saúde através de clínicas móveis e comunitárias em locais onde os pacientes se sentem confortáveis ​​em procurar atendimento.

Há três anos, Glória* engravidou. Teve muito medo de ir ao hospital devido aos rumores que ouviu sobre o elevado custo dos cuidados de aborto seguro e a necessidade de trazer uma testemunha, até que decidiu induzir um aborto na sua própria casa.

“Eu passei por isso sozinha. Foi terrível”, conta Glória. A jovem ficou com medo de perder a vida, mas decidiu enfrentar os medos e procurar cuidados pós-aborto no centro de saúde. Ao contrário do que havia ouvido, a equipa do posto de saúde ajudou-a a fazer um aborto seguro.

Após ter tido uma experiência positiva, Glória tenta agora contrariar os mitos que a impediram inicialmente de procurar um serviço de aborto seguro. “Já conversei sobre isto com as minhas amigas. Se quiserem [fazer um aborto] – eu digo-lhes para irem ao centro de saúde, e lá vão [ajudar-vos]”, frisa.

 

Diminuir o estigma

As equipas da MSF formam e capacitam educadores de pares sobre como transmitir informações de saúde fiáveis, e como apoiar as comunidades sobre cuidados de aborto seguro e outras questões de saúde, incluindo VIH e doenças sexualmente transmissíveis. A MSF também apoia 11 unidades do Ministério da Saúde na Beira para descentralizar a assistência ao aborto seguro em toda a cidade, aproximando esses cuidados das comunidades.

Os funcionários e funcionárias destas clínicas realizam atualmente cerca de 700 abortos seguros por trimestre. De Janeiro de 2022 a Junho de 2023, a prestação de cuidados de aborto seguro aumentou 41 por cento, e os cuidados pós-aborto diminuíram 73 por cento. Embora os cuidados pós-aborto incluam o aborto espontâneo (conhecido como aborto involuntário), bem como o aborto inseguro, acreditamos que a diminuição se deve provavelmente ao facto de menos mulheres recorrerem a métodos inseguros para interromper a gravidez, agora que os cuidados de aborto seguro são acessíveis com mais facilidade.

A abordagem descentralizada tem três pilares: doação de medicamentos abortivos e contracetivos, formação de pessoal na prestação de cuidados de aborto seguro, e um programa de mentoria para melhorar a qualidade dos cuidados. O principal objectivo do programa de mentoria é capacitar os profissionais de saúde com competências para servir adequadamente as pessoas de grupos marginalizados, especialmente as trabalhadoras do sexo, com o objectivo de tornar as unidades de saúde livres de preconceitos, onde todos e todas se sintam seguros para pedir cuidados.

Emily é uma trabalhadora do sexo que vive na Beira com o marido e o mais novo dos três filhos. Atualmente, é a única pessoa que trabalha na família. Frequenta a clínica comunitária da MSF na Beira desde 2018. Em dezembro de 2022, Emily engravidou e foi à clínica para procurar cuidados de aborto seguro, depois de ter recebido informações e apoio de uma colega trabalhadora do sexo.

“Nós encorajamo-nos umas às outras a visitar a clínica”, explica. “Nós conhecemo-nos como amigas e ninguém se ri das outras… porque passamos por muitas coisas diferentes durante o nosso trabalho.”

Alguns profissionais de saúde hesitam em fornecer aborto medicamentoso para além das 12 semanas, apesar de ser legal em Moçambique até às 16 semanas em casos de violência sexual. A MSF está a tentar resolver estas questões através do programa de mentoria com funcionários do Ministério da Saúde nas clínicas que apoia em toda a Cidade da Beira. Vários grupos de ativismo estão também a apelar para que o limite das 16 semanas seja alargado a todas as pessoas que procuram cuidados de aborto seguro, uma vez que limitar o acesso a este serviço no segundo trimestre põe gravemente em perigo a vida das mulheres que não tiveram acesso a serviços de aborto no início da gravidez.

 

“Nós evitámos mortes”

Isaura é uma enfermeira que trabalha para o Ministério de Saúde no centro de saúde de Fantasia, na Beira. Isaura recebeu formação da MSF e presta cuidados de aborto seguro há quase três anos.

“Sinto-me bem [por prestar estes cuidados]”, sublinha Isaura. “Costumávamos ter muitos abortos incompletos, muitos abortos inseguros – as mulheres costumavam tomar comprimidos [inseguros] ou inserir paus. Desde que começámos a fazer o aborto seguro, já não temos tantas complicações com abortos inseguros na comunidade. Evitámos mortes”.

O número de abortos que a clínica faz varia, mas Isaura diz que pode chegar a 60 num mês. A maioria das mulheres que procuram estes cuidados de saúde têm entre 15 a 30 anos, mas algumas mulheres mais velhas também procuram serviços de aborto seguro. Além disso, Isaura e a equipa com quem trabalha providenciam aconselhamento às pessoas para discutir sobre quaisquer questões ou preocupações que tenham e fornecem planeamento familiar.

 

Desde que começámos a fazer o aborto seguro, já não temos tantas complicações com abortos inseguros na comunidade. Evitámos mortes”.

– Isaura, enfermeira do Ministério da Saúde

 

Combater os mitos e a desinformação sobre o aborto

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Glória*, paciente de 23 anos, no centro de saúde de Ponta-gêa, na Beira, Moçambique. © Miora Rajaonary, 2023.

As ideias erradas sobre o aborto e os cuidados contracetivos são comuns na Beira. Por exemplo, muitas pessoas acreditam que quando se inicia um método contracetivo não se poderá engravidar no futuro. Este é também um mito comum sobre as consequências do aborto seguro.

 

Em Moçambique temos uma lei que defende que se pode fazer um aborto. Acho que não temos de ter vergonha de o fazer.”

– Maria, paciente da MSF

 

A MSF ouviu também relatos de mulheres que sofreram cobranças por profissionais de saúde para realizar o aborto seguro – um serviço que deveria ser gratuito.

“Eu não sabia o que era aborto – era a minha primeira vez”, contou Maria José*. “Quando cheguei [à clínica], eles não me atenderam bem. Trataram-me de forma agressiva e cobraram-me dinheiro – paguei-lhes 500 meticais [cerca de 8 dólares americanos – enquanto a maioria das pessoas vive com menos de 2,15 dólares americanos por dia].” É importante que as pessoas saibam que não devem ser cobradas por este serviço, para que não recorram a métodos inseguros por desespero.

A MSF usa várias ferramentas para combater mitos e divulgar informações de saúde precisas sobre cuidados de aborto seguro nas comunidades. Produzimos anúncios e promovemos discussões nas redes sociais e na rádio, onde fornecemos uma linha direta para a qual as pessoas podem ligar para obter informações adicionais, e fazemos parcerias com grupos de teatro locais que apresentam peças sobre cuidados de saúde sexual e reprodutiva.

Beatriz* é uma parteira em formação no centro de saúde de Chingussura, na Beira. Em 2022, decidiu fazer um aborto para poder terminar os estudos. O marido e a família apoiaram essa decisão. Na altura, Beatriz ouviu rumores na comunidade de que não era possível engravidar depois de fazer um aborto seguro. “Isso é um mito”, disse Beatriz. “Estou agora grávida de sete meses.” Agora que os estudos dela estão quase completos, Beatriz está ansiosa para ter um filho.

A MSF também organiza workshops, conhecidos como “Explorando Valores e Atitudes em relação ao Aborto (EVA)” em centros comunitários e nas instalações do Ministério da Saúde. O workshop tem como objetivo questionar crenças e práticas prejudiciais em torno do aborto, e melhorar a compreensão da necessidade de acesso a cuidados de aborto seguro.

Paula, uma enfermeira do Ministério da Saúde no centro de saúde de Munhava, debateu-se inicialmente com os próprios sentimentos sobre a prestação de cuidados de aborto seguro. Paula sentiu que os colegas a estigmatizavam pelo serviço que prestava, e começou a sentir-se desmotivada no trabalho.

Após o workshop (EVA) que a MSF realizou no centro de saúde de Munhava, as críticas que Paula recebia dos colegas pararam. “Após a formação em EVA, toda a gente compreendeu a importância do aborto”, disse Paula. “Então, a partir daí, tudo se tornou diferente”.

Maria fez um aborto seguro numa instalação de saúde apoiada pela MSF na Beira em maio de 2023. Depois disso, falou sobre a necessidade contínua de abordar o estigma em torno do aborto na comunidade.

“Às vezes, as pessoas têm medo de ir ao centro médico pensando que irão ser criticadas porque foram fazer um aborto”, disse ela. “Temos de dar o conselho de que ninguém deve sentir vergonha de fazer um aborto. Em Moçambique temos uma lei que defende que se pode fazer um aborto. Acho que não temos de ter vergonha de o fazer”.

 

*Os nomes foram alterados.

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