Contra a sua vontade: violência sexual e de gênero contra jovens no Haiti

A violência sexual é uma emergência médica no Haiti. No ano da inauguração da clínica Pran Men’m, mantida por Médicos Sem Fronteiras (MSF), 569 pessoas foram tratadas. A instalação, que fica em Porto Príncipe, oferece a assistência médica emergencial necessária durante as 72 horas seguintes a um episódio de violência, bem como o atendimento médico emergencial de mais longo prazo e o apoio psicológico. Após uma campanha de sensibilização local, nos últimos meses, mais de 100 pessoas têm sido atendidas por mês na clínica – mais da metade têm menos de 18 anos de idade.
Acampamento no bairro de Delmas, em Porto Príncipe.O terremoto de 2010 precedeu diretamente um rápido aumento do número de violência sexual no Haiti. Fatores que contribuem para a vulnerabilidade incluem falta de lar e perda da proteção oferecida por uma casa; perda de familiares que poderiam oferecer proteção; aumento dos níveis de violência devido ao estresse de viver em condições precárias; e falta de recursos legais para punir estupradores.As crianças também são vítimas. As mulheres que precisam deixar seus filhos em busca de trabalho, comida ou água às vezes não têm outra opção senão deixá-los sozinhos ou com estranhos; às vezes, essas crianças são abusadas sexualmente. Organizações de direitos humanos afirmam que homens vagam pelos acampamentos, em grupo, à procura de vítimas, visando jovens sem a proteção oferecida por escolas e áreas seguras.
MSF atua junto a uma rede de organizações locais, que trabalha com meninas e crianças vulneráveis. A Solidarité fanm pou yon lavi miyò (Sofalam) é uma delas. Eles oferecem abrigo para 12 meninas, que foram encaminhadas até ali por meio de um órgão governamental. Essas meninas foram separadas de suas famílias e vivem em situação de extrema vulnerabilidade. Em alguns casos, foi identificado abuso sexual. Um dos maiores desafios da Sofalam é a falta de recursos para contratar psicólogos e assistentes sociais competentes.
A maioria das crianças que vive no Centro de Ação para o Desenvolvimento (CAD) são crianças em situação de rua, empregadas domésticas e órfãs. Algumas delas foram abusadas sexualmente. Era difícil descobrir quantas e em quais circunstâncias. O CAD vem trabalhando em parceria com MSF na transferência de casos e vice-versa. Desde 1992, o CAD tem proporcionado às crianças abrigo, escolaridade, apoio psicossocial, saúde e formação profissional. O centro foi financiado até agora, mas a verba estrangeira foi suspensa no ano passado. Agora, eles mal sobrevivem e só oferecem alimentação para as crianças de que cuidam.
Gisele (nome fictício), 20 anos de idade.“Meu primo disse que eu era azarada, que havia algo de errado comigo. Um amigo dos meus pais disse que poderia me ajudar a tirar essa “má sorte”. Ele me levou a um local isolado e pediu que eu tirasse a minha roupa. Ele me tocou e me estuprou. Eu ainda dei a ele mil gourds (moeda haitiana). Contei para a minha família o que havia acontecido. Agora, ele fugiu e está escondido em algum lugar. Eu quero que a justiça seja feita. Também fiquei sabendo que ele é reincidente. Ele fez a mesma coisa com duas meninas do meu bairro, uma de 12 e outra de 15 anos de idade. Seus pais ficaram com tanto medo que não fizeram nada”.
Marie (nome fictício), 21 anos de idade.“Eu queria ser fotografada na água, fazendo uma pose como se estivesse lavando a roupa, com uma roupa comum. E, para isso, precisávamos ir a algum lugar fora de Porto Príncipe. Minha história é uma história urbana. Eu conheci um cara na rua. Começamos a conversar. Depois de algum tempo, eu falei para ele que estava em busca de um emprego e ele disse que tinha um amigo que procurava por alguém exatamente como eu. Ele disse que precisava ir a um lugar para buscar alguns documentos. Quando chegamos lá, ele sacou uma arma. Foi isso o que aconteceu”.
Stephanie (nome fictício), 52 anos de idade.“Eu tinha um namorado, mas estamos separados. Ele tinha filhos e várias outras namoradas. Eu ainda cuido de um de seus filhos e também de uma de suas filhas agora. Ela é como se fosse minha filha. Uma noite, ele veio até a minha casa e tivemos uma briga. Ele me jogou no chão e me estuprou tão brutalmente que comecei a sangrar. Meus filhos não sabem o que aconteceu. Não lhes contei nada. Eu fingi que o sangue era outra coisa. Depois de alguns dias, decidi ir à clínica de MSF. É passado agora e minha única preocupação não é com o estupro, é tornar-me cega. Tenho problemas de visão. Se não enxergar mais, não poderei continuar ajudando minha família. Isso me preocupa muito”.
Jeanne e Solange (nomes fictícios), 31 e 16 anos de idade.“Tenho três filhos e moro em Petionville. Eu estava em casa e, tarde da noite, dois homens apareceram. Eles estupraram minha filha e eu. Fui imediatamente à clínica de MSF. Eles me mantiveram por um mês em Kai Bleue. Fui muito agredida na minha cabeça enquanto queria que eles violassem a mim, mas não minha filha. Desde então, tenho epilepsia. Deus poupou minha vida. Um mês depois, queimaram a casa da minha mãe, para me intimidar. Eu tenho que fugir e me abrigar aqui porque meus violadores ainda estão por perto. Eles tiraram tudo. Tentei chamar a polícia quando me estupraram, mas levaram meu telefone. Minha cabeça dói constantemente, então eu vou à clínica de MSF duas vezes por mês”.

No Haiti, o número de jovens, principalmente mulheres e meninas, que relatam ter sofrido violência sexual e de gênero é alarmantemente alto, especialmente na capital Porto Príncipe. No entanto, o assunto não é amplamente discutido e, frequentemente, os casos não são reportados, por causa de estigma, vergonha e medo de represália por parte dos perpetradores e da comunidade. Ao mesmo tempo, os serviços que estão disponíveis para os sobreviventes, sobretudo para pessoas com menos de 18 anos de idade, são insuficientes e inadequados. (Fotos: Benedicte Kurzen/Noor)
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