Cortes no financiamento de encaminhamentos médicos põem vidas em risco no Nordeste da Síria

Em Al-Hol, onde a Médicos Sem Fronteiras trabalha e vivem mais de 40 000 pessoas, na maioria mulheres e crianças, a população deixou de ter a possibilidade de aceder a cuidados secundários e especializados fora do campo

A small pond of muddy, stagnant water between two tents after heavy rains, Al-Hol camp, northeast Syria, 13/12/2023
© MSF

Face a uma grave falta de financiamento, o vital sistema de encaminhamentos médicos custeado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 11 campos no Nordeste da Síria, em que se inclui o campo de Al-Hol, cessou. A Medícos Sem Fronteiras (MSF) alerta que isto resultará num aumento significativo no número de mortes evitáveis.

“As falhas no financiamento da OMS significam que, no final de março, os encaminhamentos de pacientes que requerem cuidados especializados ou complexos deixaram de ser custeados. Esta decisão mostra como a OMS tem de fazer escolhas difíceis num contexto em que o financiamento humanitário está a ser reduzido em toda a linha. Este corte elimina a possibilidade da população de aceder a cuidados secundários e especializados de saúde no campo de Al-Hol, onde a MSF trabalha, assim como em outros campos no Nordeste da Síria. E põe vidas em risco, na maioria de crianças, que são deixadas a definhar, às vezes com doenças tratáveis e preveníveis, e, noutros casos, a necessitar de cuidados especializados urgentes como cirurgias”, frisa o coordenador-geral da MSF no Nordeste da Síria, Allen Murphy.

Em janeiro de 2024, 93 por cento das pessoas detidas no campo de Al-Hol eram mulheres e crianças, 62% delas com menos de 18 anos e 43% menores de 12 anos.

No ano passado, a MSF referenciou 1 446 pacientes para encaminhamentos externos. No entanto, pelo menos 22 por cento foram recusados, por indisponibilidade dos serviços necessários ou devido a restrições de segurança. Agora, com o mais recente corte nos serviços, há poucas ou mesmo nenhumas opções para que até os casos que apresentam risco de vida sejam encaminhados para um hospital fora dos campos.

Já antes da cessação completa do apoio da OMS aos encaminhamentos médicos, havia no total dos 11 campos uns estimados mil pacientes categorizados como “casos frios” (não urgentes, embora pudessem agravar-se para emergências com risco de vida ao não receber o tratamento necessário). Mais de 800 destes casos eram em Al-Hol.

Os serviços de saúde especializados para tratar estes pacientes só estão disponíveis fora do campo. As condições médicas nestes casos incluem as especialidades de endocrinologia, neurologia, otorrinolaringologia, cirurgia geral, cirurgias oftalmológicas, cirurgias reconstrutivas, gastroenterologia e doenças de pele.

Efeitos devastadores dos cortes no financiamento

Os pacientes com que as equipas da MSF falaram descrevem um retrato devastador do efeito destes cortes.

“A minha filha debate-se com insuficiência renal desde 2023. Apesar dos encaminhamentos mensais para hospitais em Hassakeh, não pude acompanhá-la por causa das restrições de segurança. Recentemente, recebi a notícia devastadora de que ela não poderá continuar a ser encaminhada para hospitais em Hassakeh para tratamento, e daqui a cinco dias ela vai ficar sem medicação. Ver o sofrimento dela causa-me mais angústia do que os horrores que suportamos no campo de Al-Hol. O sentimento de impotência quando um ente querido está a sofrer é esmagador”, conta a mãe de uma paciente.

Outra pessoa no campo de Al-Hol descreve que o campo foi o seu “lar durante mais de cinco anos”. “Mesmo com os imensos desafios e a falta de esperança na vida que temos no campo, persevero para garantir que os meus filhos recebem o amor, cuidado e atenção que merecem… Há dois anos, o meu filho foi diagnosticado com uma doença que abalou as nossas vidas. O pequeno corpo dele suportou hemorragias nasais incessantes e crises implacáveis de vómito – este sofrimento eclipsou até o horror que testemunhámos durante o conflito e no tempo passado no campo. Fazem já dois anos desde o diagnóstico, e continuo a pedir tratamento urgente para o meu filho. Recentemente, o sofrimento dele intensificou-se quando começou a ter distúrbios de visão. Embora tivesse demorado mais de seis meses para ele ser encaminhado para uma consulta médica em Hassakeh, não lhe foi fornecido nenhum tratamento, e, por isso, perdeu a visão. Tem vindo a ser negado tratamento ao meu filho nos últimos dois anos. Ele continua a ter hemorragias e, todos os dias, chora de dor… A nossa fé na humanidade desvaneceu-se. Dentro dos limites do campo de Al-Hol, a compaixão não tem santuário.”

“Foi diagnosticada uma infeção gástrica crónica à minha filha em 2023. É uma doença que exige encaminhamento para um hospital para receber tratamento essencial, uma vez que os medicamentos necessários continuam indisponíveis dentro do campo. Infelizmente, o último encaminhamento dela, há um mês, em março de 2024, não lhe trouxe alívio. Desde então, os medicamentos acabaram-se, e o estado de saúde dela deteriorou-se significativamente. Apesar da dor excruciante que ela sente, ninguém dentro do campo lhe pode aliviar o sofrimento… Agora, a minha filha está à beira de consequências fatais. Implorei desesperadamente pela repatriação para o meu país de origem, onde já foi possível aceder a atendimento médico. Porém, os meus apelos não obtiveram resposta, dizem-me que o meu país nos abandonou”, é narrado por outra habitante de Al-Hol.

Dadas as crescentes necessidades humanitárias no Nordeste da Síria, é crucial que os doadores, especialmente os países que integram a Coligação Global para combater o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS, na sigla em inglês), liderada pelos EUA, aumentem o financiamento dos serviços de saúde, em vez de o reduzir. Isto mostra-se particularmente vital no que toca aos encaminhamentos para os serviços médicos externos. “As capacidades das instalações médicas locais que servem como centros de encaminhamento para as pessoas no campo de Al-Hol e noutros campos de detenção e de deslocados no Nordeste da Síria têm de ser melhoradas. É necessário um financiamento imediato para preencher as lacunas atuais neste sistema”, sustenta Allen Murphy.

“Mais de 40 000 pessoas, a maioria mulheres e crianças, de países como a Síria, o Iraque e mais de 50 outros, permanecem retidas no campo de Al-Hol. Muitas estão lá desde 2019 e, algumas, que nasceram lá, nunca conheceram uma vida para além dos limites do campo,” acrescenta o coordenador-geral da MSF no Nordeste da Síria.

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