COVID-19: contra o "apartheid das vacinas"

“A saúde não pode depender do quanto você ganha, ela é um direito humano fundamental.” Essas foram as palavras de Nelson Mandela, presidente sul-africano, no dia 1º de dezembro de 2003, no Dia Mundial de Luta contra a Aids. Na África do Sul, ainda nos lembramos daqueles tempos, quando todos os dias enterrávamos pessoas mortas pelo HIV.

Enquanto isso acontecia em meu país, os antirretrovirais salvavam vidas nos Estados Unidos e na Europa. Mas eles não chegaram à África do Sul. E pessoas morreram. Graças à mobilização de organizações da sociedade civil e das próprias pessoas com HIV, monopólios farmacêuticos foram derrotados e os antirretrovirais genéricos podiam ser fabricados em países onde as patentes não bloqueavam a produção. Os preços foram drasticamente reduzidos e centenas de milhares de vidas foram salvas.

A COVID-19 nos trouxe a outra encruzilhada histórica. Grande parte da população mundial não tem acesso às vacinas porque não há estoque o suficiente. Por outro lado, os países ricos que podem pagar estão comprando mais do que precisam. O “apartheid das vacinas” é real. Devemos nos mobilizar.

A Section27 endossou a proposta de suspensão da propriedade intelectual apresentada pelos governos da África do Sul e da Índia à Organização Mundial do Comércio (OMC). Se aprovado, cada país seria livre para decidir se concede ou aplica, ou não, patentes de medicamentos e vacinas contra a COVID-19. Seria um sinal para outros fabricantes, que poderiam começar a produzir sem medo de serem bloqueados por patentes e outros monopólios. A suspensão tem a oposição de muitos países ricos  – incluindo os da União Europeia – que estão colocando muitas vidas em perigo no resto do mundo.

De nossa parte, trabalhamos ativamente a favor desta proposta em diferentes fóruns. Pedimos a muitos países, especialmente os Estados Unidos e a UE, que parem de se opor à suspensão e entregamos um memorando às suas embaixadas na África do Sul pedindo para que mudem de posição. Esses países optaram por proteger a indústria farmacêutica e seus lucros, em vez de respeitar a soberania dos outros países que desejam proteger a saúde pública em suas próprias jurisdições.

Além disso, junto com nossos parceiros na campanha “Corrijam as leis de patentes” (da qual MSF é membro fundador), queremos melhorar o marco legal da África do Sul. Em um país onde saúde pública é um grande desafio, onde o HIV continua fazendo vítimas, onde mais pessoas morrem de tuberculose do que de qualquer outra doença, onde o câncer é um problema crescente, precisamos de leis que não impeçam o acesso a medicamentos. As patentes devem ser minuciosamente examinadas, até mesmo contestadas, se não trouxerem avanços científicos ou quando a vida das pessoas estiver em jogo. Nesta parte do mundo onde vivo, “ter acesso a medicamentos” significa não ter que escolher entre comprar remédios ou alimentar sua família.

As empresas farmacêuticas têm benefícios. Elas só fazem negócios com países ricos. Como já vimos em relação ao HIV, o resto do mundo o ignora, porque não representa um incentivo de mercado.

É por isso que pedimos que você se junte a nós para pressionar os governos, inclusive do Brasil, para apoiar a suspensão de patentes e encorajar outros países a fazerem o mesmo. Se não mudarmos a forma como fazemos negócios com as empresas farmacêuticas, criaremos um mundo onde esses nacionalismos são bons, onde é normal ignorar outras (grandes) partes do mundo e suas necessidades médicas.

Não basta que os países ricos doem vacinas para a África. Uma emergência de saúde pública não se resolve com caridade. O que resolve é você mudar sua percepção sobre o mundo, examinar as desigualdades que persistem por décadas e entender como elas funcionam. E o sistema que temos não funciona em tempos normais. Muito menos em uma pandemia.

Assine a petição de MSF e ajude a mudar essa história: https://bit.ly/2R1XkWR