Crise da COVID-19 na América do Sul força milhares de migrantes a cruzar a selva de Darién da Colômbia ao Panamá

Desde maio, MSF tratou mais de 14 mil pessoas feridas que cruzaram o desfiladeiro de Darién; organização reforça seu apelo por proteção aos migrantes e por rotas seguras.

Bajo Chiquito

A América do Sul foi severamente afetada pela pandemia da COVID-19. O dano causado à sua economia pela crise sanitária é a principal força que empurra milhares de migrantes, principalmente haitianos, cubanos e venezuelanos, a cruzar a perigosa selva de Darién. Em junho, o Panamá registrou 11 mil migrantes que entraram no país vindos da Colômbia. Cada um teve que arriscar sua vida cruzando uma selva de montanhas com inundações de rios repentinas, onde gangues de criminosos atacam as pessoas e assaltos e violência sexual são ocorrências comuns.

Médicos Sem Fronteiras (MSF) reforçou suas equipes médicas em Bajo Chiquito, o primeiro vilarejo em que os migrantes chegam no Panamá, e nas estações de recepção de migrantes (MRS, em inglês) em Lajas Blancas e San Vicente. As equipes trataram mais de 14 mil pacientes que cruzaram o desfiladeiro de Darién, desde o início de suas atividades, no final de maio. Somente em julho, uma equipe de 15 pessoas – incluindo pessoal médico, de saúde mental e logística – forneceu 6 mil consultas.

Os relatos a seguir, vindos de pessoas que fizeram essa jornada, foram coletados nesses locais:

“UM PESADELO COM 1.001 DEMÔNIOS”

Juan* é um cubano de 59 anos. Sua família ainda está em Havana. Ele deixou Cuba há três anos e, desde então, já trabalhou no Brasil e no Uruguai. “Trabalhei no plantio, na construção, como motorista. Mas devido à situação econômica e, por ser um migrante – porque eles abusam de você -, decidi sair e ir para os Estados Unidos”. Ele não esperava o que encontrou em Darién. “Saímos como um grupo de cerca de 20 pessoas. Caminhamos das quatro da manhã às sete da noite, sempre cobertos de lama, os pés sempre molhados e cobertos de areia. Não podíamos tirar as botas e era muito difícil andar. Há montanhas enormes, como a Loma de la Muerte; era imensa. Há galhos por toda parte, tudo é molhado. Eu escorregava o tempo todo. Há penhascos e ravinas; rios com corredeiras e inundações repentinas. Ouvimos animais a noite toda…”

Juan chegou em Bajo Chiquito com fome, sede, ferimentos nos pés e a pele picada por insetos. “Eles avisam você dos Estados Unidos: ‘Não faça isso, é terrível’. Mas você precisa e então pensa: ‘Se ele fez, por que não posso também?’ Mas, honestamente, não faça isso, é terrível”.

Nadine, uma dominicana de 40 anos, viajou do Chile com a sua filha de seis anos e o seu parceiro. “A vida no Chile para migrantes sem documentos é muito difícil. Eu trabalhava em uma casa de repouso para idosos, mas foi se tornando cada vez mais difícil. Achamos que levaria quatro dias para cruzar o Darién, mas demorou 11. Eu fiquei sem forças. Vi crianças e famílias sendo arrastadas pelos rios. Muitas pessoas morrem lá”.

O colombiano Oscar, de 40 anos, estava morando na Bolívia até decidir cruzar a fronteira para o Panamá. “Tenho que ajudar minha família, meu pai está doente. Mas este é um pesadelo com 1.001 demônios. Eu vi uma criança ser arrastada rio abaixo quando soltou as mãos dos pais. Vi cadáveres afogados, quatro deles. Senti o cheiro de cadáveres em decomposição na ravina”. Oscar ficou 14 dias perdido no Darién. Ele seguiu os passos dos grupos anteriores, mas, segundo o colombiano, “é confuso, você fica desorientado”.

“A SELVA ENVOLVE VOCÊ, NÃO TE DEIXA IR”

Alejandro, um venezuelano de 49 anos, deixou seu país há três meses. Ele morava em Medellín, na Colômbia, mas não conseguiu encontrar trabalho, por isso decidiu se mudar para os Estados Unidos. “A selva envolve você, não te deixa ir. Você não sabe qual caminho escolher, qual será o certo. Você escolhe um e, depois de um tempo, se encontra de volta aonde começou. Não te deixa ir; ela não quer deixar você sair”. Alejandro demorou 10 dias para cruzar a selva. No caminho, ele fez amigos, dos quais se separou. Agora ele espera ansiosamente para vê-los chegar vivos em Bajo Chiquito.

Tamara é do Haiti. Ela tem 39 anos e está grávida de seis meses. A pandemia a deixou sem escolha a não ser migrar do Chile, onde trabalhava, para os Estados Unidos. Tamara, seu marido e o cunhado pagaram US$ 2.600 para uma “agência” levá-los até lá. A agência os enviou passagens para pegar voar à Colômbia na primeira classe. Em teoria, eles cruzariam o Darién de helicóptero, mas perceberam tarde demais que haviam sido enganados. “Uma vez que estávamos na selva, nossos supostos guias nos roubaram. Eles nos deixaram nas montanhas sem comida, sem nada. Nunca teríamos colocado nossas vidas em perigo. Isso não pode acontecer. Não é certo que as pessoas estejam morrendo aqui. As autoridades devem ser capazes de salvar as pessoas ou prevenir que elas entrem. Eles têm que alertar as pessoas a não pegar essa rota”.

ASSALTOS E ESTUPROS

Juan: “Eles nos agrediram no segundo dia, um grupo de sete ou oito homens com rifles e facões. Eles nos revistaram e levaram nosso dinheiro, celulares, comida e até mesmo nossa panela para cozinhar. Revistaram as mulheres, incluindo suas partes íntimas. Eles as ameaçaram e depois as tiraram do grupo e as estupraram. Às vezes, repetidamente”.

Oscar: “Alguns estavam vestidos de preto, com espingardas, outros usavam balaclavas e tinham rifles e facas. Eles estupraram três das sete mulheres em nosso grupo. Fomos agredidos duas vezes, por gangues diferentes”.

Solange, cubana, 21 anos, morava sozinha em Cuba havia três anos. Sua mãe e seu padrasto estavam na Argentina, mas não tinham mais o suficiente para mandar dinheiro para Cuba. Solange foi primeiro para a Argentina e, depois, o grupo viajou à Colômbia para, em seguida, cruzar em direção ao Panamá. Para Solange, o percurso tinha “muitas montanhas, chuva o tempo todo e rios transbordando”. Ela continua: “Você vê cadáveres; você passa fome e é estuprada”. Ela só escapou de ser violentada sexualmente porque fugiu quando viu que seu grupo seria atacado. Porém, a cubana acabou se separando da mãe. “Aqueles no grupo ouviram os gritos de quem foi estuprada”. Ela chegou em Bajo Chiquito dois dias antes de sua mãe. “Todas essas picadas de mosquitos e insetos são das horas que passei no rio, esperando por ela”. A equipe de MSF no centro de saúde cuidou de sua mãe. Solange fala, mas não tira os olhos dela. Os pés de sua mãe estão gravemente danificados. Elas se abraçam, sorriem e choram.

Mohammed é de Serra Leoa. Ele diz que tentou manter as pessoas em seu grupo calmas quando foram atacadas. “Para onde você vai correr? Você não sabe para onde ir, não há lugar nenhum para ir”. Eles os roubaram e a única coisa que Mohammed conseguiu manter foram seus documentos. “Eles revistaram todo mundo. As mulheres também. Eu vi com meus próprios olhos como eles levaram três mulheres venezuelanas e duas haitianas; as levaram para serem estupradas”.

O grupo de Nadine foi atacado duas vezes. “Eles levaram nossa comida e dinheiro. Eles me revistaram e me tocaram. Eu estava em período menstrual, então me deixaram. Foi tudo muito agressivo, muito sujo. Uma jovem, de cerca de 20 a 25 anos, foi estuprada a noite toda”.

“NINGUÉM ESPERA, NINGUÉM AJUDA NINGUÉM”

Muitas das pessoas que sobrevivem à jornada pela selva de Darién são assombradas por aquelas que tiveram que ser deixadas para trás. As pessoas que, com os pés machucados ou ossos quebrados, muito exaustas e fracas, são abandonadas na selva e devem esperar por resgates ou ajuda que podem nunca chegar.

Angel é um venezuelano de 19 anos que deixou seu país aos 15. Ele trabalhou em Cali, na Colômbia, até não poder mais e agora quer chegar aos Estados Unidos. “Vi pelo menos 10 cadáveres na selva, mas o pior são as pessoas que ficam para trás; pessoas que não conseguem escalar montanhas ou que escorregam na chuva e na lama. É um percurso onde ninguém espera, ninguém ajuda ninguém. Eu vi uma garota cair da montanha Loma de la Muerte. As pessoas gritaram, mas ninguém fez nada; você não pode fazer nada. Você vê pessoas sentadas, feridas, que podem estar ali há dias, esperando a morte. Isso é o pior, não ter nada para ajudar”.

Daniel é um haitiano de 33 anos. Ele cruzou a selva de Darién com sua esposa e as duas filhas, de três e quatro meses. Daniel carregou a mais velha e sua esposa levou a mais jovem. “Trabalhei na construção civil no Brasil desde 2015, mas o salário não era o bastante. Ele era o suficiente para pagar apenas o aluguel. É por isso que saímos”. Eles levaram 12 dias para cruzar a selva. “No caminho, vimos uma mulher com a perna quebrada pedindo ajuda. Ela disse que esteve sozinha nos últimos seis dias. Ela pediu um facão para cortar sua perna. Não podíamos ajudá-la; não podíamos carregá-la”. Graças às informações fornecidas por seus companheiros de viagem sobre onde a mulher poderia ser encontrada, as autoridades puderam providenciar seu resgate por helicóptero. Ela foi transferida para a Cidade do Panamá.

Nadine não sabia que faltavam apenas um dia e meio para escapar da selva de Darién quando ela e sua filha Ania, de seis anos, perceberam que não poderiam dar mais um passo. Seus pés estavam muito inchados. O parceiro de Nadine decidiu deixá-las para sair do Darién e procurar ajuda. Nadine e sua filha ficaram sozinhas por três dias. “Achei que íamos morrer”. Seu companheiro e pessoas da comunidade de Bajo Chiquito conseguiram resgatá-las em canoas.

O FUTURO

Em Bajo Chiquito, Tamara reclama das condições da cidade, onde há pouca água potável, sem possibilidade de tomar banho e acesso a banheiros decentes. Angel coleta lixo ao redor da cidade para agradar as autoridades e fazer com que elas permitam sua passagem de canoa até o centro de recepção de migrantes. Alejandro e Nadine aguardam, com os pés elevados para diminuir a dor e o inchaço. Ania desenha, alguém lhe deu papel e caneta. Alejandro está feliz porque seu amigo finalmente chegou. Alguns escalam uma colina próxima onde podem obter um sinal de telefone. É fraco, mas o suficiente para que liguem para suas famílias.

Para todos eles, a incerteza é a norma. Enquanto todos serão transferidos para os centros de recepção em San Vicente e Lajas Blancas, eles terão que comprar suas próprias passagens de ônibus para seguir viagem para o norte. Nem todo mundo tem dinheiro ou a nacionalidade certa. Colombianos, equatorianos e bolivianos, entre outros, são detidos para processamento e deportação. Outros, se tiverem processos administrativos ou judiciais pendentes (por exemplo, buscando a condição de refugiado no Panamá ou como testemunha em um caso contra o tráfico de pessoas), serão mantidos em um centro de recepção de migrantes por semanas ou meses. Os centros são fonte de reclamações, pois os que são detidos nesses locais enfrentam condições de alimentação e abrigo inadequadas, falta de água potável, chuveiros e meios para se comunicar com as suas famílias.

Há ainda mais pessoas a caminho. No final de julho, cerca de 8 mil migrantes esperavam em Necoclí, Colômbia, para iniciar sua jornada pela selva de Darién.

MSF continua testemunhando o enorme fluxo de migrantes que arriscam suas vidas cruzando a selva de Darién e as sérias consequências da violência e das adversidades a que são expostos durante sua jornada. A falta de rotas seguras e legais para os migrantes os criminaliza e os obriga a usar caminhos como a selva de Darien, onde são expostos a ataques sistemáticos e agressões sexuais. MSF exige que os governos da Colômbia e do Panamá estabeleçam rotas alternativas que garantam uma passagem segura entre os dois países e implantem os mecanismos de proteção necessários em seus territórios para evitar mais mortes e sofrimentos na rota pela selva de Darién.

*Fornecemos apenas os primeiros nomes dos migrantes para proteger suas identidades.

 

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