Das bombas aos corredores desolados: deslocados sem ajuda em Zalingei, Sudão

Com uma das maiores crises de deslocações populacionais no mundo e após mais de um ano desde o início da guerra, o país continua a enfrentar um vazio humanitário

Over thirty displaced people are living in an abandoned and looted bank in Zalingei city, Central Darfur state, Sudan. Displaced people in Zalingei have been largely cut from humanitarian assistance, as actors have not returned since evacuating in April 2023, when the war started. Most displaced in Zalingei are from Al-Hasahisa camp - once housing an estimated 50,000 people, most displaced already in early 2000´s. Nowhere else to turn, they’ve now sheltered months on end in abandoned schools, banks, fire stations and other camps across the city. The humanitarian and medical needs in Sudan are immense. There is nowhere near enough humanitarian aid reaching the millions of people in need of assistance in Sudan. As of April 2024, the United Nations maintains no presence in Zalingei. MSF and only a few organizations are providing assistance in the city – representing only a drop in the ocean of the needs.
© Juan Carlos Tomasi/MSF, 2024

As equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF) estão a fornecer cuidados médicos no Hospital Universitário de Zalingei, no Sudão, e a apoiar os funcionários do Ministério da Saúde na reabilitação, formação e incentivos. Em abril, a MSF reabriu a sala das urgências, a maternidade, o centro de alimentação terapêutica para pacientes internados e o departamento de pediatria.

Quando os combates entre as Forças de Apoio Rápido (RSF) e as Forças Armadas Sudanesas (SAF) começaram em abril de 2023, as pessoas deslocadas do campo de Al-Hasahisa, em Zalingei, capital do estado de Darfur Central, ficaram presas no fogo cruzado. De acordo com as Nações Unidas, em novembro, o campo estava já sitiado pelas RSF há meses, com os feridos impossibilitados de aceder a atendimento médico fora de Al-Hasahisa, e a entrada de provisões como água e alimentos bloqueada.

O campo de Al-Hasahisa, que chegou a abrigar umas estimadas 50 000 pessoas – a maioria já deslocada no início dos anos 2000 –, acabou por se esvaziar com a fuga dos bombardeamentos incessantes. Para trás ficaram casas de tijolos danificadas e ruas fantasmas. Sem outra alternativa, as pessoas tiveram de se abrigar e permanecem há meses a fio em escolas pilhadas e abandonadas, bancos, estações de bombeiros e outras áreas na cidade.

Deslocamentos generalizados e sobrevivência sem assistência

Na noite de 2 de novembro, Aissa e sua família fugiram do campo de Al-Hasahisa em carroças puxadas por burros. A maioria dos pertences de Aissa tinha sido roubada, deixando-a apenas com um colchão, que acabou por se perder no caminho. Ela seguiu atrás da mãe e dos filhos, que lideravam o caminho.

“Fomos perseguidos e forçados a partir”, conta Aissa, de 50 anos. “Alguns dos nossos homens foram mortos. Outros foram detidos. As nossas coisas foram levadas e roubadas. Ao partirmos, fomos parados [por homens armados] e tivemos de esperar até de manhã. Eles amarraram [pessoas] e espancaram os rapazes”.

Aissa e família estão a residir, há mais de seis meses, num contentor de carga na devastada estação de bombeiros de Zalingei. Como 6,5 milhões de outras pessoas deslocadas no Sudão, dependem principalmente de ajuda humanitária que permanece indisponível em muitos lugares. A sobreviver com trabalhos esporádicos, Aissa e a família não têm acesso adequado a água, alimentos ou serviços essenciais, incluindo cuidados médicos.

“Não há como ganhar dinheiro”, explica Aissa. “A gente só sai e vagueia pela cidade. Se encontramos alguém para quem se possa lavar roupa, lavamos e tentamos ganhar algum dinheiro com isso.”

Do outro lado da rua da estação de bombeiros, Najwa, de 30 anos, e os três filhos abrigaram-se no banco da cidade, que fora pilhado, com mais 30 outras pessoas deslocadas do campo de Al-Hasahisa. Ali, criou uma ilusão de lar: os cofres do banco são usados como armários; nas janelas, antes destinadas à entrada de luz e agora emparedadas, e nos peitoris estão alguns sacos esfarrapados e plantas murchas.

“Estamos a viver nestas condições sem um teto, e não temos comida”, declara Najwa, a apontar para os lençóis rasgados suspensos por cima da entrada. “Mas nunca recebemos qualquer assistência, nem sequer uma barra de sabão. Em breve, vai chegar a época das chuvas e não sabemos para onde ir.”

Sem acesso a cuidados de saúde e medicamentos

No coração da cidade, a Universidade de Zalingei – que antes era um centro para estudantes de medicina, agricultura e tecnologia – é agora um espaço desolado. Fardos de feno para burros são armazenados no auditório e os prédios do campo universitário estão ligados por varais de roupas.

Transformados em abrigo improvisado, as salas de aulas e os escritórios da universidade abrigam mais de mil pessoas, muitas deslocadas do campo de Al-Hasahisa. A maioria são agricultores, agora impossibilitados de fazer cultivo regularmente e ganhar rendimentos. As pessoas dependem umas das outras devido à ausência de assistência humanitária.

“Todos contribuímos e qualquer pessoa que participe pode compartilhar [os medicamentos]”, explica Mohammed, um dos primeiros a fugir para a universidade. “Partilhamos com a comunidade e tratamos o paciente.”

A apenas 10 minutos de distância, Khadija espera que a filha Malaka receba alta do Hospital Universitário de Zalingei. É o primeiro dia de atendimento desde que as equipas da MSF reabriram a sala das urgências agora reabilitada, e Malaka é uma das primeiras pacientes. Deslocada e forçada a vender os últimos pertences para ganhar algum dinheiro, Khadija não tinha como comprar os medicamentos necessários para a filha.

“Fiz mais de uma hora para chegar ao Hospital Universitário de Zalingei e receber tratamento para a minha filha, que testou positivo para malária”, conta Khadija. “No campo de Al-Hasahisa [onde viviam anteriormente], recebíamos medicamentos de graça. Aqui em Zalingei não é a mesma coisa. Mas hoje [pela primeira vez], recebemos medicamentos gratuitos.”

Apoiar um sistema de saúde colapsado

No contexto de violência em larga escala no Sudão, trabalhadores e instalações médicas têm sido atacados e pilhados, deixando grande parte do sistema de saúde danificado ou sem funcionar. A única instalação de saúde secundária restante no estado de Darfur Central, o Hospital Universitário de Zalingei, também foi pilhado várias vezes durante a guerra.

Após mais uma pilhagem em maio de 2023, os trabalhadores do Ministério da Saúde fizeram o possível para manter o hospital funcional, mobilizando voluntários por toda a cidade. Uma delas foi a enfermeira Assma, de 21 anos. Algumas semanas após uma pilhagem em maio, o hospital voltou a ser atacado e, desta vez, causou a morte de um paciente.

“Eu estava a levar um paciente para a área das salas de cirurgia quando o médico foi alvejado no pescoço”, recorda Assma. “Ele estava a fazer uma cesariana. Depois disso, o paciente morreu no corredor.”

Para restaurar os cuidados especializados no estado, equipas da MSF estão a fornecer cuidados secundários no Hospital Universitário de Zalingei e a apoiar o Ministério da Saúde com formações e incentivos para os funcionários, além de reabilitar os departamentos das urgências, maternidade e pediatria. Em abril, a MSF realizou mais de 900 consultas nas urgências, quase 400 internamentos pediátricos, perto de cem partos seguros e tratou mais de 50 crianças em situação de desnutrição no centro de alimentação terapêutica para pacientes internados.

“A guerra interrompeu completamente o acesso das pessoas a cuidados de saúde no Sudão”, frisa o coordenador de emergências da MSF, Victor García Leonor. “Os preços dos medicamentos e dos alimentos dispararam, tornando-os inacessíveis para as pessoas – especialmente para os deslocados – e a maioria das instalações de saúde não está a funcionar adequadamente. Ao mesmo tempo, o país enfrenta um vazio humanitário, o que está a exacerbar ainda mais as enormes necessidades de saúde não atendidas.”

Apesar de o Sudão ser uma das maiores crises de deslocações populacionais no mundo, muitas organizações humanitárias não regressaram ao país após a retirada feita na eclosão da guerra no ano passado. Atualmente, após mais de um ano desde o início da guerra, o Sudão continua a enfrentar um vazio humanitário.

A MSF continua a instar todas as partes em confronto e beligerantes a respeitarem as proteções especiais que os trabalhadores de saúde e as instalações médicas possuem, de acordo com o Direito Internacional Humanitário, bem como a garantirem o acesso humanitário seguro a todas as áreas do Sudão, sem exceção, e a pararem os bloqueios de provisões e de trabalhadores humanitários.

Além disso, para garantir que a assistência humanitária chega às pessoas, as Nações Unidas devem ampliar urgentemente os esforços e concentrar-se em obter resultados claros, relacionados com o aumento do acesso, de forma a contribuir ativamente para uma intensificação rápida e maciça do apoio humanitário prestado às pessoas no Sudão.

 

A MSF atualmente trabalha e apoia mais de 30 instalações de saúde em nove estados do Sudão: Cartum, Al-Jazirah, Nilo Branco e Nilo Azul, Al-Gedaref, Darfur Ocidental, Darfur Norte, Darfur Sul e Darfur Central, e Mar Vermelho. A MSF também providenciou recentemente respostas em Kassala. As equipas da organização médica-humanitária operam projetos em áreas controladas tanto pelas SAF quanto pelas RSF, a fornecer cuidados de traumatologia, cuidados maternos e pediátricos e a tratar a desnutrição a par de outros serviços de saúde. As equipas da MSF também estão a apoiar refugiados sudaneses e pessoas regressadas no Sudão do Sul e no Leste do Chade.

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