Doença renal crónica não-tradicional: uma epidemia no Sul da Guatemala

Desde agosto de 2021, a Médicos Sem Fronteiras (MSF) tem trabalhado na região de Escuintla para desenvolver um modelo de cuidados simples, abrangente, sustentável e reproduzível, com o objetivo de assegurar um diagnóstico atempado e a redução da morbidade associada à doença renal crónica de origem não-tradicional

MSF oferece atendimento médico direto à população nos municípios de La Gomera, La Democracia e Sipacate, na Guatemala.
© Arlette Blanco

Há três anos, Salomón descobriu que estava gravemente doente com doença renal. Isto aconteceu após ter sido mordido por uma cobra numa plantação de cana-de-açúcar durante a zafra – como é conhecido localmente o período de colheita da cana-de-açúcar – no município de La Gomera, em Escuintla, cujo território é quase todo ocupado por produções agrícolas. Aos 54 anos, Salomón, que atualmente não tem casa e vive junto a um aterro sanitário, teve de parar de trabalhar porque o seu estado de saúde se agravou. Foi-lhe dito, por exemplo, que jamais andaria.

“Eu juro que não me conseguia mexer. Sentia-me muito fraco e ao levantar-me os meus joelhos cediam imediatamente e caía ao chão”, conta, sentado numa desgastada cadeira de plástico. A companheira, Blanca, cuidou dele durante meses. Salomón já não conseguia cuidar de si próprio, o que lhe causava muita dor física e psicológica.

Para ir às consultas de rotina tinha de viajar de autocarro durante várias horas até chegar à Cidade da Guatemala – Blanca e ele partiam na noite anterior à consulta para conseguirem chegar a tempo. Todos estes esforços destruíram-lhe a saúde emocional e esgotaram os poucos recursos económicos que tinha.

“Lá, até cobram para usarmos a casa de banho. Se quisermos tomar o pequeno-almoço, custa-nos dinheiro, também. E como eu não podia trabalhar, tivemos de vender tudo – a televisão, o rádio… tudo. Agora nem chão temos, vivemos num pequeno pedaço de terra, que inunda sempre que chove, e cheira a lixo acumulado”, explica. Salomón aproveita as habilidades antes adquiridas para cortar lenha, e, assim, ganhar algum dinheiro.

Tentou várias vezes regressar aos campos de cana-de-açúcar para trabalhar, mas nunca mais o contrataram. Trabalhou como jardineiro durante alguns meses e tentou outros empregos também: conduziu um camião, mas teve de desistir, devido às dores fortes que sentia nas costas por estar muitas horas sentado. Salomón, tal como muitos dos seus familiares e conhecidos, foi diagnosticado com doença renal crónica de origem não-tradicional (CKDnt, na sigla em inglês) em fase cinco, o estado mais avançado de acordo com as normas internacionais de patologia renal.

Campanhas de sensibilização

A doença, também conhecida por nefropatia endémica mesoamericana (MeN, na sigla em inglês), caracteriza-se por uma perda progressiva da função renal, o que afeta a capacidade de execução de funções vitais pelos rins, como a eliminação de resíduos e a concentração de urina. Ao longo do tempo, “tornou-se numa epidemia regional de grande impacto socioeconómico e difícil de gerir pelas autoridades. A doença é assintomática até chegar a um estado mais avançado. Na grande maioria dos países onde ocorre, não existem instalações adequadas de terapia de substituição renal (incluíndo diálise peritonial, hemodiálise e transplante renal), e morreram milhares de trabalhadores nas últimas décadas”, lê-se no relatório do segundo encontro sobre nefropatia endémica mesoamericana, organizado pelo Instituto da América Central de estudos sobre Substâncias Tóxicas.

De acordo com a antropóloga médica Frida Romero, esta patologia “difere da doença renal crónica, porque afeta homens jovens sem histórico de doenças crónicas, que geralmente trabalham em plantações agrícolas, sob condições físicas extremas e temperaturas elevadas, em ambientes empobrecidos.”

A Médicos Sem Fronteiras (MSF) realiza desde agosto de 2021 campanhas de saúde a nível comunitário com o objetivo de sensibilizar as pessoas para esta doença. Em março deste ano, Salomón decidiu abordar uma das equipas.

Quando Pablo Izeppi, um dos psicólogos da MSF, o foi visitar a casa – uma construção improvisada de lençóis e latas –, avaliou o seu estado e tem-lhe providenciado desde então apoio psico-emocional, em conjunto com o resto da equipa multidisciplinar. “Naquela altura”, explica Izeppi, “ele não parecia saudável, nem física, nem emocionalmente. Encaminhámo-lo para o centro de saúde, fizemos os testes de rastreio e depois também o encaminhámos para o Centro Nacional de Doença Renal Crónica (UNAERC, em espanhol), devido à gravidade do seu estado. Salomón esforça-se para perceber que alternativas de tratamento tem, e isto trouxe-lhe benefícios a curto prazo. Mas a doença está a evoluir, e ele tem dificuldades em obter tratamento ativo.”

Salomón tem agora um plano de cuidados paliativos que lhe permite, a curto prazo, melhorar a saúde física e emocional. “Estamos a acompanhá-lo no seu processo espiritual, psicossocial e médico. O nosso trabalho é apoiá-lo e ajudá-lo a perceber o que se está a passar com ele. Explicamos-lhe as opções que tem, e estamos aqui para fornecer os nossos serviços a ele e à família, respeitando o seu tempo e as suas preferências de tratamento”, acrescenta o enfermeiro e supervisor do apoio ao paciente no projeto da MSF, Mateo Cerro.

Barreiras no acesso a cuidados de saúde

De acordo com o Registo de Diálises e Transplantes, a Guatemala tem o maior número de pacientes renais da América Latina. Todos os anos, são registados 162 novos pacientes que requerem terapia de diálise ou hemodiálise e, atualmente, há mais de 9 000 a fazerem tratamento de substituição de função renal.

Escuintla, onde Salomón vive, é uma das zonas com maior prevalência e incidência de doença renal crónica na Guatemala. Dados do Ministério da Saúde indicam que, entre 2008 e 2015, a mortalidade aumentou em 18% e a morbidade em 75%.

Uma vez que La Gomera não tem qualquer tipo de serviços especializados para doenças renais, ou cuidados continuados integrados, as pessoas desta comunidade têm de fazer longas distâncias. Por vezes, demoram horas ou até mesmo dias para chegar às unidades de saúde nos centros urbanos ou na capital da Guatemala. E alguns destes serviços estão sobrecarregados, o que torna ainda mais difícil obter cuidados imediatos. Além disso, os pacientes têm de fazer ainda mais deslocações para obter medicação ou proceder a análises requeridas pela equipa de especialistas. Tudo isto representa uma série de obstáculos para as pessoas, e muitas, como Salomón, acabam exaustas por causa do desgaste económico e emocional que lhes causa.

Um ano de trabalho com a comunidade

A MSF iniciou atividades em Escuintla com o propósito de criar e desenvolver um modelo de cuidados simples, abrangente, sustentável e reproduzível que assegure um diagnóstico atempado, e a redução da morbidade associada à doença renal crónica de origem não-tradicional.

Em agosto de 2022, a MSF completa um ano destas atividades, tendo enfrentado vários desafios, decorrentes da natureza multifatorial da doença, cujas causas não são ainda bem conhecidas. Por outro lado, a equipa multidisciplinar cresceu e fortaleceu-se para identificar pessoas que sofrem da doença e apoiá-las conforme as necessidades.

“Inicialmente, organizámos as equipas médicas, de logística, administrativas e comunitárias em La Gomera, que é um dos três municípios onde a MSF está a trabalhar. Os outros dois são La Democracia e Sipacate. Em fevereiro, assinámos um acordo com o Ministério da Saúde para iniciar o trabalho das equipas nas comunidades, visando reforçar a prevenção, o diagnóstico precoce, o tratamento e a vigilância da doença renal crónica de origem não-tradicional”, explica o coordenador-geral da MSF na Guatemala, México e Honduras, Rodd Gerstenhaber.

Entre os resultados alcançados, o responsável médico do projeto, Benjamin Jeffs, destaca o acesso aos centros de saúde locais para efetuar diagnósticos e recolher dados, bem como o fortalecimento da confiança com a comunidade. “De certa forma, salvámos a vida a algumas pessoas. Parece que agora há uma maior consciencialização da doença. Temos de fazer com que as pessoas saibam que isto é um problema, e que existe.”

Conhecer e diagnosticar a doença

O promotor de saúde da MSF Oliver Sosa contabiliza o tempo para controlar o circuito pelo qual as pessoas passam durante a triagem (testes rápidos e de laboratório). Uma equipa de dez pessoas, incluindo promotores e educadores, está encarregada de visitar as comunidades todas as semanas e incentivá-las a participar nos rastreios, de forma a aumentar o número de pessoas envolvidas e interessadas em conhecer melhor a doença: como preveni-la e como detetá-la.

Às 08h30 da manhã, o serviço começa com a higienização das mãos e uma sessão de esclarecimento. Depois, a equipa da MSF pesa as pessoas e mede-lhes a tensão arterial, antes de realizar análises ao sangue. Num dia, a equipa observa entre 40 a 60 pessoas. Alguns dos testes são transferidos para os laboratórios e daí as equipas médicas encaminham os casos em fase quatro e cinco para o Centro Nacional de Doença Renal Crónica.

Entre agosto de 2021 e junho de 2022, a MSF realizou o total de 2 376 rastreios para detetar a doença, e alcançou 3 030 pessoas através de atividades comunitárias. Um acompanhamento multidisciplinar é também providenciado a mais de 106 pessoas que estão em fase quatro ou cinco da doença – os casos mais graves.

As comunidades com que a MSF trabalha demonstraram um forte interesse nos cuidados e tratamentos para a doença. A Médicos Sem Fronteiras está também empenhada em reforçar a capacidade nas comunidades de identificação dos sinais de risco e a necessidade de cuidados médicos abrangentes

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