Doenças tropicais negligenciadas

O médico Koert Ritmeijer comemora os avanços no combate a doenças esquecidas, mas adverte que ainda há muito a ser feito

Doenças tropicais negligenciadas

O primeiro Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas acontece hoje, dia 30 de janeiro de 2020. O objetivo é reunir apoio e ampliar esforços em um ano decisivo de ação contra doenças tropicais negligenciadas (DTNs). Ao longo de 2020, a Organização Mundial da Saúde deve lançar novas metas para orientar a luta contra as DTNs até 2030.

“Estou muito empolgado com o progresso alcançado na luta contra as doenças tropicais negligenciadas nas últimas décadas. Houve avanços substanciais em termos de cobertura e inovações, em comparação à época em que MSF começou a tratar pacientes, há 20 ou 30 anos. Ter um dia para chamar a atenção para as DTNs é uma boa notícia para as mais de um bilhão de pessoas afetadas, que estão entre as mais pobres e marginalizadas do mundo.

As equipes de Médicos Sem Fronteiras (MSF) geralmente trabalham em ambientes com poucos recursos, cujos sistemas de saúde são subdesenvolvidos. Vemos em primeira mão os profundos efeitos físicos, médicos e econômicos das DTNs nas comunidades afetadas. Apesar de afetar milhões e matar dezenas de milhares de pessoas por ano, as DTNs costumam receber pouca atenção de desenvolvedores de medicamentos, de formuladores de políticas ou da mídia hegemônica. Nosso foco em MSF, como organização médico-humanitária, tem sido as DTNs mais negligenciadas e com maior taxa de mortalidade. São elas: calazar (leishmaniose visceral), doença do sono (tripanossomíase humana africana), doença de Chagas, envenenamento por picada de cobra e Noma.

Calazar

Desde 1989, MSF tratou quase 150 mil pessoas com calazar no Sudão do Sul, Sudão, Etiópia, Quênia, Somália, Uganda, Índia e Bangladesh. Nós tratamos a doença pela primeira vez enquanto trabalhávamos em campos de deslocados internos próximos a Cartum, mas inicialmente não sabíamos o que era. Nossas equipes atenderam vários pacientes muito fracos e desnutridos, que vinham da região oeste do Alto Nilo. Eles sofriam de febre persistente, um sistema imunológico suprimido e baço aumentado. A maioria morreu, geralmente devido a infecções oportunistas.

Nos últimos anos, novas ferramentas para administrar melhor a doença se tornaram disponíveis. Na última década, os doadores e os programas nacionais tornaram-se cada vez mais envolvidos e o acesso ao tratamento foi ampliado. Hoje, quando pacientes com calazar chegam às instalações de MSF, geralmente estão com um quadro de saúde muito preocupante. Mas, com o tratamento e os cuidados certos, eles se recuperam quase milagrosamente. Após duas semanas de hospitalização, eles podem ir embora a pé. Bebês que nasceram com calazar, a partir dos três meses de vida, podem ser completamente curados. Além disso, ao contrário de doenças como a malária, a maioria dos pacientes sai imune à doença por toda a vida.

No subcontinente indiano, há oportunidades para um controle eficaz da doença. Espera-se que esforços sejam concentrados para eliminar a leishmaniose visceral até o fim deste ano na Índia, em Bangladesh e no Nepal. Devido ao baixo número de casos atualmente, MSF encerrou seus programas de leishmaniose visceral em Bangladesh e na Índia, mas ainda desempenha um papel no     aconselhamento técnico e na defesa da mobilização de fundos para a fase pós-eliminação. MSF ainda mantém programas ativos de leishmaniose visceral na África.

Leishmaniose cutânea (LC)

A leishmaniose cutânea (LC) é uma das doenças tropicais mais comuns e mais negligenciadas do mundo. Mais de um milhão de casos foram registrados nos últimos cinco anos (2014-2018), mas isso representa apenas uma fração do número real. Como a LC não é uma doença fatal, muitas vezes não é priorizada pelos formuladores de políticas, embora as consequências possam ser graves e permanentes. Entre 2009 e 2019, MSF tratou cerca de 25 mil pacientes que sofrem desta doença.

Doença do sono (tripanossomíase humana africana)

A doença do sono era uma das doenças tropicais mais negligenciadas, mas, devido a ações de combate bem-sucedidas, está agora a caminho da eliminação mundial, com menos de mil casos relatados em 2018. Devido à ampliação do número de centros de tratamento, novos tratamentos, detecção ativa de casos, treinamento laboratorial e de equipes médicas, aumento da vigilância e campanhas de conscientização, o número de casos relatados diminuiu progressivamente. Tudo isso pôde ser alcançado devido à colaboração internacional, ao melhor desempenho dos diagnósticos, aos novos regimes de medicamentos e ao compromisso e investimento contínuos de recursos pelos programas nacionais.

Entre 1986 e 2018, MSF examinou quase 3,5 milhões de pessoas e tratou mais de 50 mil pacientes com doença do sono em 7 países diferentes. O baixo número atual de casos não justifica mais a continuidade de projetos independentes. MSF, portanto, mudou sua abordagem do gerenciamento vertical de doenças para a integração de diagnóstico e tratamento em outros projetos já existentes.

Mas, apesar desses avanços e do desenvolvimento de novos e melhores testes, a demanda por eles diminuirá à medida que o número de casos for reduzindo. Nossa preocupação é que haja rupturas em sua produção e disponibilidade no futuro. É fundamental que os produtores continuem comprometidos com a produção de qualidade a longo prazo e a disponibilidade de ferramentas de diagnóstico para a doença do sono. Isso é essencial para a completa eliminação da doença.

Chagas

A doença de Chagas é a doença parasitária mais comum e a principal causa de insuficiência cardíaca e morte em países endêmicos da América Latina. No entanto, estima-se que 99% das pessoas com doença de Chagas permanecem sem diagnóstico e menos de 0,2% recebem o tratamento de que precisam. Desde o primeiro envolvimento de MSF com a doença de Chagas, na década de 90, houve um grande aumento de instituições, grupos de pacientes, ONGs e outros atores que lideraram os esforços locais e internacionais para tornar possível a conscientização, o diagnóstico, o tratamento e a prevenção.

Picada de cobra

Um fato muito positivo é que, agora, problemas de saúde que afetam gravemente populações pobres em meios rurais, como o envenenamento por picadas de cobra, são tratados pelo departamento de Doenças Tropicais Negligenciadas da Organização Mundial da Saúde. Nos hospitais de MSF, quase todas as vítimas de picada de cobra sobrevivem, o que demonstra a importância crucial de uma equipe bem treinada, do acesso imediato a cuidados de qualidade e da disponibilidade de soros antiofídicos de qualidade. Da mesma forma, outras condições negligenciadas importantes, como Noma ou brucelose, devem receber mais atenção.

A luta ainda não acabou

Ainda há muitos desafios pela frente e um longo caminho para percorrer antes que as doenças tropicais negligenciadas se tornem doenças do passado. O progresso rumo ao controle e à eliminação das DTNs está ameaçado por vários fatores, incluindo crises humanitárias, desastres naturais, mudanças climáticas e deslocamentos populacionais.

Pensando no futuro, é urgentemente necessário que haja maior acesso aos testes de diagnóstico de DTNs já existentes e que sejam desenvolvidos novos e melhores testes. Os diagnósticos atuais não estão sujeitos a doações e geralmente não estão disponíveis em campo. O fornecimento errático de alguns dos principais testes de DTNs é uma preocupação real.

Além disso, muitos testes têm pouca precisão, o que dificulta muito a integração entre DTNs e outros serviços de saúde oferecidos em campo. Uma proporção significativa de casos de febres persistentes de origem desconhecida em países com recursos limitados é provavelmente causada por DTNs. Na ausência de testes sensíveis e específicos, a maioria desses casos permanece sub-reconhecido e não tratado.

Também devemos permanecer vigilantes quanto à qualidade e segurança do fornecimento de medicamentos para DTNs. Houve escassez de medicamentos importantes para o combate do calazar, bem como a comercialização de produtos abaixo do padrão. O soro antiofídico contra picada de cobra é outro tipo de produto de saúde muito negligenciado, pois o mercado africano de antiveneno ainda é dominado por produtos de eficácia duvidosa.

Por fim, é urgentemente necessário que haja mais financiamento para o controle de DTNs em contextos humanitários. Isso é absolutamente crucial, pois as doações de medicamentos por si só não podem resolver o problema. Tanto os países endêmicos quanto os doadores devem priorizar as necessidades dos países mais pobres, enquanto o ecossistema global de pesquisa e desenvolvimento precisa ser reformado para incentivar o desenvolvimento de novas e melhores ferramentas, das quais os pacientes negligenciados precisam urgentemente.”

O dr. Koert Ritmeijer é cientista médico e de saúde pública, e está à frente do trabalho de Médicos Sem Fronteiras (MSF) com doenças tropicais negligenciadas. Ele atua na organização desde 1989. Desde meados dos anos 90, o dr. Koert coordena e presta apoio técnico aos programas de leishmaniose de MSF na África Oriental e no sul da Ásia, incluindo a resposta a várias grandes epidemias de leishmaniose visceral, geralmente em áreas extremamente pobres e afetadas por conflitos. Ele também liderou vários projetos de pesquisa clínica e operacional, com o objetivo de melhorar o diagnóstico, tratamento e controle da leishmaniose visceral em contextos de recursos limitados. Ao longo da carreira, o dr. Koert se dedicou a pesquisas que contribuíssem para ampliar as taxas de sobrevivência de pacientes com leishmaniose visceral co-infectados com HIV na África Oriental.

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