Em Cabo Delgado, ainda se sentem as marcas do conflito no acesso à saúde

Sete anos após o início dos conflitos no Norte de Moçambique, as necessidades humanitárias e de saúde das pessoas continuam significativas, com a MSF a trabalhar em áreas de difícil acesso

Moçambique Cabo Delgado
© MSF

Desde que o conflito começou em Cabo Delgado, em 2017, mais de 1 milhão de pessoas foram forçadas a fugir de casa, o que equivale a quase metade da população da província, localizada no Norte de Moçambique. De acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU), ainda há 576 mil[1] pessoas deslocadas, enquanto outras 630 mil retornaram a áreas que foram afetadas pelo conflito nos últimos três anos, principalmente nos distritos de Mocímboa da Praia e Palma.

Hoje, a situação de segurança permanece volátil, com operações militares das forças moçambicanas e aliados, especificamente do exército ruandês, que ocorrem nas áreas costeiras. Também houve um aumento de ataques atribuídos a um grupo armado não estatal numa região mais ampla de Cabo Delgado, que levaram a novas deslocações em vários distritos da província nas últimas semanas.

 

Anos depois, as pessoas ainda sentem o impacto da deslocação inicial

Moçambique Cabo Delgado deslocados
Omar Issa, paciente da MSF, foi forçado a fugir de Palma em 2021. © MSF, 2024

“Nunca esquecerei aquele dia”, partilha Omar Issa, lembrando o momento em que a cidade natal, Palma, foi atacada, em abril de 2021. Omar e a mulher deixaram tudo para trás e partiram para Pemba, a capital da província, caminhando vários dias pela floresta. Durante a correria, Omar separou-se dos filhos, que não estavam em casa no momento do ataque. Semanas depois, soube que haviam chegado em segurança ao distrito de Montepuez.

 

Não me sinto confortável, não me sinto seguro.”

– Omar Issa, paciente da MSF

 

A família passou meses separada. O reencontro deu-se apenas em 2022, depois das forças de segurança retomarem o controlo de Palma, abrindo portas para o retorno sob orientação das autoridades.

“Não me sinto confortável, não me sinto seguro”, relata Omar numa clínica apoiada pela Médicos Sem Fronteiras (MSF). “As memórias aterrorizantes da violência ainda me assombram.”

Como Omar, muitas pessoas na região lutam para superar os impactos diretos e indiretos da insegurança.

 

Impacto do conflito no fornecimento de assistência médica

Embora o conflito tenha diminuído em 2023, alguns ataques ao longo de 2024 geraram preocupações. Em particular, um ataque no distrito de Macomia, em maio, forçou a MSF a suspender atividades.  As nossas clínicas móveis e trabalho realizado nas comunidades em outras áreas da província, como Palma, Mocímboa da Praia e Mueda, também foram suspensas nos meses seguintes e só estão agora a ser retomadas gradualmente.

Dentro e fora dessas cidades, muitas unidades de saúde permanecem sem funcionar, seja porque foram danificadas durante os ataques ou por falta de financiamento. As instalações também carecem de profissionais de saúde, pois as pessoas não se sentem seguras o suficiente para trabalhar. Sem muitas outras opções de cuidados, a interrupção temporária das atividades da MSF realizadas nas comunidades afetou fortemente os moradores, principalmente pacientes com condições crónicas de saúde e necessidades de emergência, como as mulheres com gestações complicadas.

“O acesso às pessoas que apresentam maior necessidade de assistência médica nas áreas mais difíceis de alcançar de Cabo Delgado deve ser concedido às organizações humanitárias”, apela a representante da MSF em Moçambique, Nathalie Gielen.  “Continuamos a pedir às partes em conflito que respeitem e protejam os profissionais médicos e as instalações de saúde para que possamos sustentar e expandir as nossas atividades. Queremos fornecer serviços que salvam vidas a comunidades em situação de vulnerabilidade durante esta crise prolongada.”

Alguns pacientes têm dificuldade em aceder a cuidados de saúde devido às falhas nas redes de comunicação e às más condições das estradas. Algumas mães que chegam com os filhos doentes no centro de saúde apoiado pela MSF em Nanduadua, na cidade de Mocímboa da Praia, precisam de apanhar até quatro tipos diferentes de transporte para chegar à instalação.

 

Estação chuvosa exacerba necessidades humanitárias

Além dos desafios sempre presentes no acesso aos cuidados médicos, Cabo Delgado enfrenta outra estação chuvosa, que pode durar até abril. O período traz a probabilidade de ocorrência de ciclones, que já atingiram Moçambique várias vezes nos últimos anos, naquele que é um país muito vulnerável à crise climática.

Nas unidades de saúde apoiadas pelas nossas equipas, já observamos um alto número de pacientes com malária, uma doença fatal transmitida por mosquitos. É especialmente perigosa para crianças e gestantes, mas é relativamente fácil de ser curada quando detectada e tratada numa fase inicial. Entre janeiro e setembro, a MSF tratou mais de 82 mil casos de malária em Cabo Delgado.

“Muitas crianças estão a chegar com malária avançada, devido às longas distâncias [para chegar às unidades de saúde]”, explica Selma Felix, técnica em medicina da MSF. “Das crianças atendidas no centro de saúde de Nanduadua, 50 por cento [apresentaram testes] positivos para a doença.”

Como parte da nossa resposta de emergência, também nos preparamos para possíveis surtos de cólera, uma doença transmitida pela água que é endémica na região, e para uma alta de casos de sarampo.

“O acesso limitado a água potável e saneamento adequado exacerba esses desafios de saúde, criando um ambiente propício à disseminação de doenças”, alerta o coordenador médico da MSF em Moçambique, Benjamim Janeiro Mwangombe.

 

Trabalho comunitário e apoio às unidades de saúde

Saúde Cabo Delgado
Manuel João, profissional médico da MSF, observa uma criança no centro de saúde de Palma. © MSF, 2024

A MSF realiza atividades médicas e humanitárias em Cabo Delgado desde 2019 para ajudar as pessoas impactadas pelo conflito, através de serviços comunitários e de um apoio a centros de saúde e hospitais. Atualmente, fornecemos assistência de saúde mental, melhorando os sistemas de água e saneamento, providenciando consultas de saúde sexual e reprodutiva e auxiliando pessoas que vivem com VIH e tuberculose, entre outras atividades.

Em áreas remotas, a MSF apoia os agentes médicos do Ministério da Saúde e trabalha com promotores de saúde – profissionais que atuam como uma ponte entre as comunidades e os profissionais médicos. Isso revelou ser essencial para garantir que a assistência médica chega aos que mais precisam, mesmo em regiões instáveis.

Indrissie Imbrahim, promotor de saúde da MSF, destaca que, apesar dos desafios, que são muitos, quase 5 mil pacientes com necessidade de cuidados especializados foram encaminhados por equipas da MSF para estruturas médicas em Cabo Delgado de janeiro a setembro deste ano.

No entanto, algumas das necessidades mais agudas das pessoas não são visíveis. Após os ataques em Macomia e a suspensão temporária das nossas atividades realizadas nas comunidades, Azvinei Juliasse, supervisor de saúde mental da MSF, mostra-se preocupado.

“Perdemos contacto com vários pacientes que lutavam contra a depressão e, em muitos casos, não viam mais propósito nas suas vidas”, conta. “Tememos que, sem apoio contínuo, possam cair em estados depressivos”, acrescenta, destacando um dos desafios constantes que as pessoas enfrentam em Cabo Delgado: a interrupção dos seus cuidados de saúde.

 

[1] © OIM DTM Moçambique Avaliação multissetorial de localização – 14, agosto de 2024

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