Entre a guerra e a incerteza: testemunhos de deslocados na Síria

A mais recente escalada de violência no país forçou milhares de pessoas a fugir

Edifícios destruídos por bombardeamento num subúrbio de Raqqa, Síria.
©️ Giammarco Sicuro

Shivan* ainda recorda os dias terríveis que ele e a sua família viveram quando, em dezembro de 2024, a guerra se aproximou da sua cidade, Manbij, no Norte da Síria. Durante uma visita de uma equipa da Médicos Sem Fronteiras (MSF) a uma escola no governorado de Hassakeh, que acolhe pessoas deslocadas, ele partilhou histórias sobre a perda de entes queridos e o medo de um futuro incerto.

 

Nunca esquecerei aquele dia; o meu amigo foi morto diante dos meus olhos.

 

“Ouvimos o som dos combates e das explosões em Manbij e tentámos manter-nos seguros, na esperança de que a situação acalmasse e não tivéssemos de fugir. Mas os disparos intensificaram-se e aproximaram-se”, conta Shivan.

Quando os homens armados chegaram, ordenaram-lhe, assim como a todos os habitantes do seu bairro, que abandonassem as casas. “Um dos meus amigos recusou-se a sair, dizendo: ‘Não vou deixar a minha casa’. Disse-lhe para ir embora antes que nos obrigassem, mas nunca imaginei que acabaria assim”, afirma.

Dispararam-lhe na cabeça sem hesitar. Nunca esquecerei aquele dia; o meu amigo foi morto diante dos meus olhos.”

Ao ver o sangue do amigo na rua, Shivan e a sua família juntaram-se às cerca de 100.000 pessoas que fugiram de Manbij e Tal Rifaat em busca de segurança nas regiões de Raqqa e Hassakeh, no Nordeste da Síria.

 

Corredor de uma escola em Raqqa, na Síria, utilizada como abrigo temporário para os deslocados internos que fogem da região de Afrin
Corredor de uma escola em Raqqa, na Síria, utilizada como abrigo temporário para os deslocados internos que fogem da região de Afrin. ©️ Giammarco Sicuro

 

Um ciclo contínuo de deslocação e sofrimento

Esta vaga de deslocação faz parte de um ciclo repetido de violência e êxodo que afeta a população da Síria há 13 anos. Agora, a mais recente escalada de violência, incluindo em Tel Rifaat, Shehba e Manbij, tornou estas áreas inseguras, o que forçou milhares de pessoas a fugir novamente.

A MSF não estava presente nas áreas de onde as pessoas fugiram, mas recolheu testemunhos sobre atos de violência extrema, incluindo homicídios, assédio e agressões físicas, que as pessoas testemunharam nas localidades e ao longo do caminho para o Nordeste da Síria.

 

Quis reagir, fazer algo, mas apontaram-me uma arma à cabeça.

 

“Fomos abusadas fisicamente. Toda a gente era um alvo, assediaram as minhas irmãs e a mim, tocaram nos nossos corpos e humilharam-nos de formas que nem consigo descrever”, relata Jiyan*, uma mulher que também foi deslocada de Manbij.

Quis reagir, fazer algo, mas apontaram-me uma arma à cabeça. Não pude fazer nada além de ver enquanto violavam a minha família e destruíam a minha casa.”

 

Sobrevivência em condições precárias

Desde então, milhares de deslocados vivem em abrigos temporários. Nestes locais, as condições são difíceis durante o inverno, sem isolamento adequado, aquecimento ou privacidade. Muitas famílias lutam para encontrar um abrigo seguro e estável.

“Quando chegámos a Tabqa, percebemos que a situação ali não era boa”, avança Layla*, deslocada de Manbij.

“A área estava sobrelotada com outras pessoas deslocadas, e não podíamos ficar ali por muito tempo. Decidi trazer a minha família para Hassakeh, na esperança de encontrar um lugar melhor para viver.”

As equipas da MSF têm distribuído kits de higiene, fraldas, cobertores, almofadas, colchões e casacos quentes para melhorar a saúde, o bem-estar e a dignidade das pessoas deslocadas. Desde dezembro de 2024, foram distribuídos mais de 17.500 itens essenciais em 87 centros coletivos de emergência em todo o Nordeste da Síria.

As equipas da MSF também têm trabalhado para melhorar o acesso a água potável, fornecendo mais de 5 milhões de litros de água a centros coletivos em Tabqa, Raqqa e Hassakeh. Para melhorar as condições sanitárias e evitar surtos de doenças, as equipas também limpam latrinas nos abrigos improvisados.

Apesar do apoio das organizações locais e internacionais, alguns serviços essenciais não estão disponíveis, incluindo os cuidados para doenças não-transmissíveis. Para responder a algumas dessas necessidades urgentes, a MSF realizou atividades através de clínicas móveis em Tabqa, para prestar serviços médicos. Em Kobane/Ain Al-Arab, a MSF doou 20.000 vacinas contra o sarampo para reforçar os serviços de saúde locais.

 

Vista aérea das tendas temporárias utilizadas pelas pessoas deslocadas que fugiram do Norte da província de Alepo devido aos combates, montadas no estádio da cidade de Tabqa, no Nordeste da Síria.
Vista aérea das tendas temporárias utilizadas pelas pessoas deslocadas que fugiram do Norte da província de Alepo devido aos combates, montadas no estádio da cidade de Tabqa, no Nordeste da Síria. ©️ Gihad Darwish

 

Um futuro incerto para os deslocados

A recente deslocação de milhares de pessoas agravou uma crise humanitária já grave e prolongada. As pessoas vivem em campos sobrelotados, com infraestruturas gravemente danificadas e há uma carência generalizada de necessidades básicas, como água, eletricidade, cuidados de saúde, alimentação e abrigo adequado ao clima.

 

Estou apenas a tentar sobreviver”

 

Até 20 de janeiro, cerca de 24.000 pessoas ainda permaneciam em abrigos improvisados em todo o Nordeste da Síria. Algumas pessoas sentiram-se seguras para regressar a outras áreas do país, enquanto outras encontraram alojamento em comunidades de acolhimento.

Sem um local seguro para onde regressar, a necessidade de apoio contínuo para os deslocados permanece urgente.

“Estou apenas a tentar sobreviver”, diz Ali*, um homem de 70 anos. “Mas já não me resta nada além das memórias de uma vida que me foi roubada. Já não tenho um lugar a que possa chamar de casa.”

 

*Os nomes foram alterados para proteger a privacidade e a segurança das pessoas que testemunharam.

 

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