Entre os escombros de um cessar-fogo desfeito, a água torna-se mais uma arma de guerra em Gaza

A Médicos Sem Fronteiras alerta para o impacto direto da escassez de água na saúde pública e nas condições de vida. A entrada de ajuda humanitária, incluindo combustível e equipamentos essenciais, continua bloqueada

Uma criança palestiniana recolhe água na cidade de Beit Lahia, a norte da Faixa de Gaza.
©️ Nour Alsaqqa/MSF

Em Gaza, na Palestina, entre o que restou de mais uma trégua que não resistiu e o número de vítimas que continua a aumentar, há uma nova tática de guerra: o bloqueio à água. As autoridades israelitas impedem o acesso à água ao cortarem a eletricidade e a entrada de combustível em Gaza. Enquanto as forças israelitas continuam a bombardear a Faixa de Gaza, a Médicos Sem Fronteiras (MSF) urge o restabelecimento imediato do cessar-fogo e a entrada de ajuda humanitária – incluindo combustível, eletricidade, água e materiais de saneamento – antes que mais vidas sejam perdidas.

“Com esta nova vaga de bombardeamentos, que matou centenas de pessoas em apenas alguns dias, as forças israelitas continuam a privar os habitantes de Gaza de água ao cortar a eletricidade e impedir a entrada de combustível – recursos essenciais para o funcionamento da infraestrutura hídrica, como as bombas de água”, explica a coordenadora de água e saneamento da MSF em Gaza, Paula Navarro. “Para quem já suportou bombardeamentos incessantes, o sofrimento é agravado por uma crise de água: muitas pessoas são obrigadas a beber água imprópria para consumo, outras simplesmente não têm acesso suficiente.”

 

Uma família palestiniana instalou-se sobre os escombros da casa destruída para viver na cidade de Beit Lahia, a Norte da Faixa de Gaza.
Uma família palestiniana instalou-se sobre os escombros da casa destruída para viver na cidade de Beit Lahia, a Norte da Faixa de Gaza. ©️ Nour Alsaqqa/MSF

 

Se o combustível se esgotar por completo, o sistema de abastecimento de água que ainda funciona vai colapsar. Isso significa cortar o acesso à água, com consequências desumanas às pessoas que permanecem em Gaza. Para além dos ferimentos e mortes causados pelos bombardeamentos, a falta de água segura está a ter impacto nas condições de vida e saúde das pessoas.

Nos centros de saúde primária de Al Mawasi e Khan Younis, as equipas da MSF estão a tratar sobretudo três condições médicas: icterícia, diarreia e sarna, todas ligadas à falta de água potável e de condições mínimas de higiene.

 

Mãe palestiniana mostra o estado da pele do filho pequeno devido à falta de higiene e de água potável em Khanyounis, na Faixa de Gaza.
Mãe palestiniana mostra o estado da pele do filho pequeno devido à falta de higiene e de água potável em Khanyounis, na Faixa de Gaza. ©️ Nour Alsaqqa/MSF

 

“O número alarmante de crianças com doenças de pele é uma consequência direta da destruição e bloqueio de Gaza”, sublinha a coordenadora médica da MSF em Gaza,  Chiara Lodi. “Para além de tratarmos adultos e crianças com ferimentos causados pelos ataques, estamos a assistir a um número crescente de crianças com doenças que são perfeitamente evitáveis, como a sarna. Uma doença não só desconfortável, mas que, em casos mais graves, leva as crianças a coçarem a pele até sangrar, o que provoca infeções. Isto acontece porque as crianças não conseguem tomar banho, o que facilita a propagação de sarna e outras infeções, que deixam cicatrizes duradouras.”

 

Engenheiros de água e saneamento da MSF avaliam tubulações de água na cidade de Beit Lahia, ao Norte da Faixa de Gaza. ©️ Nour Alsaqqa/MSF

 

Mesmo antes dos ataques com mísseis que puseram fim ao cessar-fogo de dois meses, Israel já tinha bloqueado a entrada de ajuda humanitária. Como consequência, os esforços humanitários para recuperar o sistema de água de Gaza continuam gravemente obstruídos e atrasados devido ao sistema de pré-aprovação de “uso dual”, imposto pelas autoridades de Israel. A maioria dos materiais de água e saneamento, como cloro, peças sobressalentes essenciais para unidades de dessalinização, geradores, bombas para furos e depósitos de água, requer pré-aprovação.

“As restrições impostas pelas autoridades israelitas tornaram quase impossível restaurar um sistema de abastecimento de água funcional”, relata Paula Navarro. “A produção de água depende de energia, mas os novos geradores com mais de 30 quilowatts estão proibidos de entrar. Somos obrigados a montar geradores à ‘Frankenstein’ – aproveitar peças de uns para conseguir reparar outros.

A MSF insta as autoridades de Israel a pôr fim ao cerco desumano sobre Gaza, a cumprir a lei humanitária internacional e as suas responsabilidades enquanto potência ocupante, e a garantir o acesso imediato e sem restrições da ajuda humanitária à Faixa.

 

Crise da água em Gaza em resumo:

  • Mesmo antes dos ataques mais recentes, a crise da água em Gaza, já grave devido aos cortes israelitas de eletricidade e água, e à destruição de infraestruturas, agravou-se depois de as autoridades israelitas terem bloqueado a entrada de ajuda a 2 de março e, a 9 de março, cortado a eletricidade. A principal unidade de dessalinização em Khan Younis reduziu a produção de 17 milhões para 2,5 milhões de litros por dia.
  • Entre janeiro e fevereiro de 2025, as equipas da MSF realizaram mais de 82.000 consultas de cuidados de saúde primários. Quase um quinto desses atendimentos estavam relacionados com problemas associados à falta de água e de higiene, incluindo infeções no couro cabeludo e doenças de pele como a sarna.
  • Entre janeiro e meados de março de 2025, a MSF produziu mais de dois milhões de litros de água potável e distribuiu mais de 36 milhões. Desde o cessar-fogo, a organização iniciou a distribuição no Norte de Gaza, incluindo no campo de Jabalia, onde a ajuda esteve bloqueada durante meses.
  • Entre janeiro de 2024 e o início de março de 2025, dos 1.700 pedidos feitos pela MSF para fornecimentos de água e saneamento ao abrigo do sistema de uso dual, apenas 28 por cento foram aprovados pelas autoridades israelitas. Muitos continuam num limbo burocrático, com tempos médios de resposta que chegam aos 60 dias – em alguns casos, ultrapassam os 200. Mesmo os fornecimentos aprovados podem ser recusados nas fronteiras. Em novembro de 2024, as autoridades israelitas aprovaram uma unidade de dessalinização da MSF após uma espera de 85 dias. No entanto, apesar de tentativas semanais desde 5 de fevereiro, a unidade continua sem conseguir entrar em Gaza, com os camiões a serem sistematicamente impedidos na fronteira.

 

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