Etiópia: o ciclo constante de deslocamento

População tem dificuldade de acesso a abrigos e alimentos

Etiópia: o ciclo constante de deslocamento

Milhares de pessoas viajaram de um lado para outro entre as áreas de Gedeo e Guji, no sul da Etiópia, nos últimos 15 meses, após um surto de violência étnica em abril de 2018 e repetidos esforços das autoridades para realocá-las. Os acampamentos onde eles estavam instalados foram fechados, mas muitas pessoas não podem voltar para suas casas e permanecem deslocadas nas comunidades anfitriãs ou em suas áreas de origem. A maioria está sobrevivendo em condições difíceis com pouca assistência humanitária, lutando para proteger seus filhos da desnutrição e de outras doenças.

Nos últimos 15 meses, Desalegn, sua esposa e seus cinco filhos viveram em uma dúzia de lugares diferentes. Depois que sua própria casa em Guji Ocidental foi incendiada, eles procuraram abrigo com um vizinho. Quando o vizinho pediu que saíssem, eles ficaram com os sogros de Desalegn, mas não demorou muito para que tivessem que se mudar novamente.

Eles foram para um local para pessoas deslocadas, depois para um prédio em ruínas e depois para uma escola, nunca ficando mais do que alguns dias em cada um desses lugares. Finalmente, decidiram deixar Guji Ocidental , na região de Oromia, na Etiópia, para Gedeo, na Região das Nações, Nacionalidades e Povos do Sul (SNNPR, na sigla em inglês), de onde vinha a família ancestral de Desalegn. Uma vez lá, eles continuaram a se deslocar de um lugar para outro, tentando encontrar um local adequado para se estabelecer.

Crise de deslocamento em massa
A longa caminhada de Desalegn e sua família ocorreu entre abril e agosto de 2018, cinco meses em que um surto de violência étnica no sul da Etiópia viu centenas de milhares de pessoas forçadas a sair de suas casas. No auge da crise, cerca de 1 milhão de pessoas foram deslocadas, segundo dados oficiais.

Em agosto do ano passado, Desalegn decidiu voltar para casa em Kercha Woreda, onde antes administrava uma fazenda de frutas e vegetais e onde a família tinha uma vida confortável. “Nós tínhamos tudo: laranjas, limas, abacates, banana e manga”, diz Desalegn. “Também produzíamos muito café todos os anos e vendemos meus produtos no mercado.” 

Desalegn construiu um abrigo nas ruínas de sua fazenda, mas logo depois de finalizado, ele também foi incendiado. A família foi embora mais uma vez para Gedeo, onde atualmente mora em uma pequena cabana de madeira alugada de um parente em Banko Gotiti. Depois de um ano de deslocamento quase contínuo, eles estão aliviados por terem encontrado um lugar para se estabelecer agora, embora sua existência seja precária.

“Pagamos um aluguel de 100 Birr etíopes (cerca de 13 reais) por mês por esta casa”, diz Desalegn. “Não estamos recebendo nenhuma assistência [humanitária] no momento. Às vezes consigo um emprego como diarista, mas o que ganho não é suficiente para sustentar toda a família. Nós não temos comida suficiente para sair por aí.”

Altas taxas de desnutrição
Os filhos de Desalegn, com idades entre 1 e 11 anos, estão todos saudáveis por enquanto. Mas, para muitos outros, é uma história diferente. As taxas de desnutrição têm sido altas desde o início da crise. Entre julho e dezembro de 2018, MSF tratou mais de 6 mil crianças desnutridas no contexto de uma intervenção emergencial mais ampla. Quando as equipes de MSF chegaram novamente em Gedeo, em abril de 2019, após uma enorme deterioração da situação humanitária, suas avaliações mostraram que as taxas de desnutrição aguda grave entre crianças com menos de 5 anos e mulheres grávidas e lactantes estavam bem acima do limiar de emergência.

Nos primeiros dias desta nova resposta de emergência, a cada semana pelo menos um filho chegava morto nas unidades de saúde apoiadas por MSF em Gotiti e Gedeb. Este ano, a gravidade da condição dos pacientes foi maior em comparação ao ano passado. Desde abril de 2019, MSF inscreveu cerca de 2.340 crianças em programas nutricionais ambulatoriais e tratou 560 crianças que sofrem de desnutrição aguda grave com complicações em centros de estabilização.

Acampamentos demolidos
Em maio de 2019, as autoridades etíopes demoliram os campos de deslocados antes de um terceiro plano para devolvê-los às suas áreas de origem. Enquanto muitos de fato retornaram, a saúde tanto dos repatriados quanto daqueles que permaneceram em Gedeo ainda está em risco. Equipes de MSF em Gedeo continuam a ver um grande número de pacientes, incluindo alguns que vêm de Guji principalmente para tratar seus filhos desnutridos.

Más condições de vida
“Desde que os campos foram desmantelados, não houve uma grande mudança nas condições médicas dos pacientes que vemos em Gedeo”, diz a coordenadora da equipe médica de MSF, Caroline Harvey. “Tratamos principalmente diarreia e infecções respiratórias, com alguns casos de meningite e muitas doenças de pele – todas relacionadas às más condições de vida das pessoas. Mesmo que elas não estejam mais em acampamentos, aquelas que optaram por permanecer em Gedeo ainda estão vivendo em condições muito precárias, seja alugando abrigos, comprando terras ou permanecendo em igrejas, escolas ou com parentes.” 

Embora os cuidados médicos oferecidos por MSF sejam gratuitos, visitar um médico na Etiópia geralmente custa dinheiro, o que impede muitos pais de levar suas crianças desnutridas ou doentes para os centros de saúde até que estejam em estado crítico. Em alguns locais, o tratamento da desnutrição não vai além da distribuição de Plumpy’Nut (pasta à base de amendoim altamente calórica), o que faz com que as crianças frequentemente não sejam encaminhadas para tratamento especializado em tempo hábil.

Assistência humanitária limitada
Para alguns, os eventos do ano passado trouxeram desafios adicionais. Simein, uma mulher de 26 anos de idade, do distrito de Kercha, não apenas tem de cuidar de seus três filhos pequenos, mas também dos dois filhos de sua irmã, que morreu alguns meses atrás. Ela está sentada na sala de espera do hospital em Gedeb, onde seu sobrinho de 2 anos foi internado para tratamento de desnutrição.

“Eu tenho todas essas crianças comigo. Eu fico preocupada sobre como educá-las, já que não tenho fontes de assistência,” diz Simein. Durante a crise, ela trabalhou por um tempo como mobilizadora comunitária e conseguiu economizar um pouco, mas suas economias agora estão esgotadas. A história de Simein é semelhante à de Desalegn: uma das tantas de pessoas que se deslocam constantemente nos últimos 15 meses.

“Esta última vez, quando o governo anunciou o plano de retorno [em maio de 2019], decidimos nos juntar a outros e voltar também”, diz Simein. “As autoridades em Guji nos deram cobertores e lençóis de plástico e começamos a construir um abrigo temporário em nossa terra. Eles prometeram que forneceriam mais assistência – alguns itens essenciais e comida. Construímos o abrigo e esperamos por mais assistência, mas nunca recebemos.”

Enquanto esperavam, Simein e sua família foram ameaçadas e seu abrigo foi destruído, forçando-os a voltar para a estrada. Após uma ausência de apenas duas semanas, a família estava de volta a Gedeo.

Vida renovada, novas esperanças
Nem todos os repatriados enfrentam as mesmas dificuldades. Alguns conseguiram deixar para trás o fantasma do conflito que os desenraizou e recomeçaram suas vidas. Este é o caso de Bekele, suas três esposas e 15 filhos. Eles buscaram segurança no ano passado em Guji depois de fugir das tensões intercomunitárias em Gedeo, mas agora estão de volta à sua casa, que havia sido poupada da violência e ainda estava de pé.

“Depois de deixar a nossa propriedade, cada momento foi desafiador e não tínhamos conforto, nem dinheiro”, diz Bekele. “Meus filhos ficaram doentes muitas vezes; eles não tinham roupas para usar. Voltamos para cá permanentemente em maio [de 2019]. Todos os meus vizinhos também estão de volta.”

Bekele está confiante de que os tempos ruins acabaram. “Agora há paz e, se a situação continuar assim, não deve haver novas ondas de violência”, diz ele. “Não temos mais problemas com os Gedeos e nos comunicamos bem uns com os outros. Agora eu plantei milho novamente e estou esperando a nova safra crescer.”

Bekele e sua família tiveram sorte e olham para o futuro. Mas para muitos outros, ainda há um longo caminho a percorrer.
 

Partilhar