Feridas silenciosas: uma visão sobre os desafios morais associados ao trabalho humanitário

Uma crise silenciosa, um problema negligenciado: as angústias morais sentidas pelos profissionais de saúde, quando não podem dar o seu melhor. A investigadora da Médicos Sem Fronteiras (MSF) Maelle L’Homme, da Unidade de Investigação sobre Questões e Práticas Humanitárias, analisa o sofrimento e stress moral na linha da frente da resposta à pandemia de COVID-19 e os desafios éticos enfrentados pelos profissionais de saúde

© John Wessels/MSF

Em 2020, a pandemia de COVID-19 tornou visível para o público alguns dos muitos desafios associados ao trabalho humanitário. De repente, as taxas de mortalidade, a falta de provisões médicas e as escolhas difíceis que assolam os profissionais em contextos de escassez de recursos começaram a ser reportadas nos meios de comunicação social e a ser tema de conversa em círculos sociais por todo o mundo. No entanto, pouco foi dito sobre as angústias sentidas por quem faz essas escolhas e que testemunha o seu impacto direto na linha da frente do trabalho de saúde e humanitário.

Esta omissão talvez se deva a um retrato que é muitas vezes feito dos profissionais de saúde, pintados como heróis, glorificados e aplaudidos por colocarem a vida em risco para cuidarem de outras pessoas. Até as histórias de intimidação e violência contra profissionais de saúde, que emergiram durante a pandemia, serviram de algum modo para ilustrar a capacidade de superação destes trabalhadores nas linhas da frente face às adversidades, e alimentar uma narrativa de “super-herói”. Um problema com esta narrativa é que nada faz para enfrentar as causas fundamentais que levaram muitos sistemas de saúde à beira do colapso. Mais importante ainda, é uma distorção da realidade que negligencia totalmente a complexidade de algumas situações, assim como as decisões não desejáveis que muitas vezes tiveram de ser tomadas, deixando marcas em quem teve de as tomar.

Compreender o desconforto moral

Trabalhar na vanguarda de uma emergência médica exige, muitas vezes, um confronto direto com a impotência face ao sofrimento humano, por isso os trabalhadores humanitários sentem-se frequentemente apreensivos em relação àquela glorificação. Sentimentos de insuficiência, de insignificância e frustração são alguns dos sintomas de stress moral, definido como a sensação de “saber exatamente o que fazer, mas ser impedido de seguir o curso certo de ação devido a constragimentos institucionais, contextuais ou culturais.”[i] Em termos humanitários, a angústia moral é sentida quando algo – um medicamento, uma vacina, alguma tecnologia médica – existe no mundo, mas, por alguma razão, não está disponível nos contextos em que estes profissionais operam.

Foi durante um surto de ébola no Uganda em 2009 que a Médicos Sem Fronteiras começou a considerar formalmente as consequências éticas impostas por emergências epidémicas e o seu impacto na saúde mental das equipas no terreno. Em 2018, a análise de experiências morais tornou-se num foco de investigação no Centro Operacional da MSF em Genebra. O projeto “Experiências Morais”, que continua em desenvolvimento, reconhece a importância das questões morais na realização das ações humanitárias e fornece aos profissionais um espaço para partilharem histórias e estratégias de prevenção ou alívio destas angústias. O objetivo do projeto é, fundamentalmente, compreender os desafios morais associados ao trabalho humanitário e desenvolver recursos para apoiar os profissionais da MSF.

Escolhas imperfeitas em tempos de pandemia

Os dilemas associados ao trabalho humanitário não são novidade, nem especificamente decorrentes da COVID-19, mas a pandemia trouxe para os olhos do público a angústia e o sofrimento morais que os trabalhadores humanitários enfrentam sempre que têm de fazer escolhas em cenários de privação. No início da pandemia, a incerteza científica sobre uma doença que ainda não se sabia como prevenir nem tratar limitou os cuidados que era possível prestar. Às vezes, porque faltava oxigénio medicinal, as pessoas não conseguiam receber cuidados de fim-de-vida adequados, impedindo-as de ter uma morte digna. E o risco das nossas equipas em contrairem a doença também não era específico da COVID-19, mas apresentou-se ainda mais elevado porque faltava equipamento de proteção individual no mundo inteiro.

Além disso, a pandemia gerou uma situação inédita, em que alguns países onde a MSF está sediada foram afetados gravemente pela COVID-19, enquanto que muitas regiões onde a organização tem equipas a trabalhar no terreno, na África subsariana, por exemplo, tiveram um menor impacto durante a primeira vaga. Alguns profissionais internacionais foram confrontados com decisões que tinham de ser tomadas imediatamente, conforme as fronteiras começavam a fechar-se, sem terem toda a informação necessária para medirem as consequências da decisão, e perguntando-se: “Onde é que posso ser mais útil, aqui com a MSF, ou em casa?”

As equipas internacionais a trabalhar no terreno sofreram os efeitos colaterais do encerramento dos aeroportos, pois ficaram impossibilitadas de voltar para casa. Os voos de partida eram planeados a ritmos diferentes, dependendo do país de origem dos profissionais, gerando sentimentos de desigualdade. Encontrar voos domésticos dentro do continente africano, por exemplo, foi um enorme desafio. As equipas no terreno ficaram também divididas entre manterem-se à espera para partir, na esperança de apanhar um avião, ou apoiar colegas exaustos, renunciando assim às medidas de quarentena impostas pela grande maioria das companhias aéreas na altura.

Em grande escala, o ambiente de trabalho cada vez mais complexo, criado pelas medidas de saúde pública, tais como a paralisação de voos internacionais, gerou na MSF preocupações quanto à capacidade em manter certos projetos regulares e em dar resposta a outras necessidades de saúde, que não a COVID-19. As prioridades da organização foram discutidas internamente vezes sem conta. Nalguns sítios, a MSF viu-se forçada a suspender as atividades regulares temporariamente, fosse para dar prioridade à resposta contra a COVID-19, ou porque muitos profissionais não conseguiam trabalhar, pois eles mesmos ou familiares tinham contraído a doença ou não conseguiam viajar devido às restrições.

Cuidar dos cuidadores

O projeto “Experiências Morais” visa mostrar os profissionais de saúde como seres humanos e sensibilizar as pessoas para os efeitos destas escolhas impossíveis e decisões imperfeitas na saúde mental dos profissionais médicos. Pretende dar a conhecer as angústias provocadas pelo trabalho feito em contextos de escassez de recursos e, consequentemente, pelo confronto com escolhas muito difíceis, em que só há más escolhas possíveis, e em que não se consegue prestar o mais elevado nível de cuidados de saúde e humanitários.

Na medida em que a decisão de trabalhar numa organização médica e humanitária é frequentemente vivida como uma “escolha moral”, tentar responder a necessidades infinitas com recursos limitados não é apenas uma parte do trabalho, é o trabalho. Aqui é crucial não deixar que as pessoas carreguem sozinhas o peso das decisões difíceis. Para a MSF, desmontar o mito da omnipotência é uma necessidade, para evitar caricaturar as pessoas como vítimas ou heróis. Ao rejeitar a glorificação dos trabalhadores humanitários, reafirma-se a necessidade básica de protegê-los, para que possam continuar a servir quem está mais vulnerável.

[i] Andrew Jameton, “Dilemmas of moral distress: moral responsibility and nursing practice”, AWHONN’s clinical issues in perinatal and women’s health nursing, vol. 4 (4), 1993, p.542-51

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