Ferimentos por queimadura são um problema crónico de saúde em Gaza

Todos os anos, as clínicas da MSF na Faixa de Gaza tratam cinco mil novos pacientes com queimaduras, na larga maioria crianças que se feriram em acidentes domésticos. Uma das principais causas dos acidentes são as condições inseguras de habitabilidade

© Tetiana Gaviuk/MSF

Na clínica da Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Khan Younis, no Sul da Faixa de Gaza, quatro fisioterapeutas preparam-se para um dia atarefado. Vestem equipamentos de proteção individual e reveem a lista de pacientes para aquele dia – 42 no total, e quase metade são crianças a recuperarem de ferimentos por queimadura.

A fisioterapeuta Reem Abu Lebdeh remove as malhas elásticas de compressão dos ferimentos de Abdallah, de 21 meses, e examina cuidadosamente as cicatrizes nas pernas, no abdómen e no braço direito da criança. Dez meses antes, Abdallah sofreu uma queimadura que lhe causou danos em 50 por cento da superfície do corpo. Passou mais de dois meses no hospital e recebeu um transplante de pele do pai.

“Mais algumas sessões e ele pode receber alta”, avalia Reem Abu Lebdeh.

Apesar de estas serem boas notícias, não significam que é o fim dos tratamentos para Abdallah. “Neste momento as cicatrizes não lhe restringem os movimentos, mas isso pode mudar conforme ele for crescendo. Vai ter de continuar a usar faixas elásticas de compressão até que as cicatrizes parem de crescer e tem de ser reavaliado regularmente”, explica a fisioterapeuta.

Todos os anos, as clínicas da MSF em Gaza tratam cinco mil novos pacientes com queimaduras, a larga maioria crianças que se feriram em acidentes domésticos. As condições inseguras de habitabilidade são uma das principais causas destes acidentes. Quase 70 por cento da população de Gaza são pessoas refugiadas, muitas das quais vivem em campos de refugiados, e mais de metade da população vive em situação de pobreza, de acordo com as Nações Unidas. Daqui resulta que vastos números de pessoas residem em habitações sobrelotadas e sem segurança, e sem acesso suficiente a eletricidade, aquecimento, água potável e saneamento.

“Muitos dos ferimentos por queimadura podiam ser evitados com habitações mais seguras e educando as pessoas sobre os riscos”, frisa a coordenadora da MSF das atividades de queimados, Séverine Brunet.

A umas camas de distância de Abdallah, no lado oposto do quarto, está Sham, de dois anos, cujo ferimento por queimadura foi também causado por um acidente em casa. A fisioterapeuta Noura Alzaeem massaja-lhe as cicatrizes. A família de Sham, de quatro pessoas, vive num quarto arrendado no campo de refugiados em Khan Younis – é um espaço pequeno onde só cabe uma cama, um colchão e dois armários de parede. Sem cozinha, a mãe de Sham faz as refeições no chão do patamar à porta do quarto. Um dia, Sham tropeçou nos fios do fogão elétrico quando a mãe estava a cozinhar e caiu. O fogão quente caiu em cima dela, queimando-lhe 10 por cento do corpo.

Três anos antes, o irmão mais velho de Sham, Jamal, que tinha dois anos na altura, também sofreu uma queimadura: escorregou da cama e caiu em cima de um fogão, que lhe queimou a cara. Foi tratatado numa clínica da MSF durante oito meses, conta a mãe.

Um problema crónico de saúde

A MSF tratou 5 540 novos pacientes com queimaduras em 2021, uma subida dos 4 591 em 2020 e dos 3 675 em 2019. Em média, mais de 60% destes pacientes eram crianças com menos de 15 anos, e 35% crianças com menos de cinco anos. Tal como Abdallah e Sham, muitas feriram-se em acidentes domésticos causados por condições precárias de habitabilidade.

A administração do tratamento correto nas primeiras 48 horas após um ferimento por queimadura é crucial para a recuperação dos pacientes, mas a maior parte das vítimas de queimaduras e as suas famílias não estão familiarizadas com os primeiros-socorros para ferimentos deste tipo. Pasta dos dentes, café em pó e molho de tomate são alguns dos remédios caseiros mais comuns, e algumas pessoas aplicam lixívia ou sal nos ferimentos.

“A primeira coisa a fazer é pôr a área queimada sob água fria corrente”, avança Séverine Brunet. “E se o ferimento for grave, é preciso procurar tratamento médico o mais depressa possível.”

Chegar a um hospital pode igualmente ser um desafio. Quando Nabeel, de quatro anos, se encostou acidentalmente a um fogão quente em que a avó, Sana, estava a cozer pão, ficou com as costas gravemente queimadas. Não conseguindo pagar um táxi, demoraram uma hora, numa carroça puxada por cavalos, para chegar ao hospital.

Para ter as melhores hipóteses de recuperação, pacientes com queimaduras graves precisam de trocar frequentemente as ligaduras e de fisioterapia e tratamentos de seguimento, mas muitas pessoas acabam por faltar às consultas à medida que os custos dos transportes se acumulam. A MSF providencia transporte para chegar e regressar das clínicas em Gaza de forma a evitar este problema.

“Seguir um plano de tratamento é muito importante, mas constitui também um desafio para os nossos pacientes em Gaza”, avalia a coordenadora da MSF das atividades de queimados. “Além disso, a fraca higiene resultante do acesso inadequado a água limpa e a saneamento aumenta os riscos de infeções e de resistência a antibióticos, que é prevalente em Gaza. Muitos pacientes carecem ainda de acesso a boa nutrição ou têm comorbidades que retardam o processo de cura”, precisa ainda Séverine Brunet.

Os ferimentos por queimadura podem ter impactos duradouros na saúde física e psicológica de uma pessoa, e o tratamento pode requerer prolongadas hospitalizações e meses de cuidados de seguimento para evitar desfiguramento e incapacidades – cuidados que o sistema de saúde na Faixa de Gaza, paralisado pelos bloqueios de Israel e do Egito, não pode disponibilizar.

Para melhorar o acesso a cuidados de qualidade de pacientes com queimaduras, a MSF providencia serviços médicos para os ferimentos e para a gestão da dor, fisioterapia e apoio psicosocial às vítimas e a quem delas cuida, em quatro clínicas na Faixa de Gaza, e presta apoio à unidade de queimados no hospital Al-Shifa – a principal unidade de encaminhamento para todos os hospitais em Gaza. Uma média de 270 pessoas são internadas e tratadas todos os anos devido a ferimentos por queimadura no hospital Al-Shifa.

Porém, enquanto as pessoas continuarem a viver em condições de habitabilidade em sobrelotação e desadequadas, o fardo dos ferimentos por queimadura persistirá a pesar sobre Gaza.

 

A MSF trata pacientes com queimaduras na Faixa de Gaza desde 2011. Em 2020, quando a pandemia da COVID-19 dificultou a transferência de pacientes com queimaduras para fora de Gaza, a organização médico-humanitária começou a disponibilizar máscaras de compressão a pessoas com queimaduras na cara, usando tecnologia de digitalização e impressão 3D fabricada dentro de Gaza pela primeira vez. Em 2021, a MSF abriu a primeira sala de anestesia em Gaza para crianças com queimaduras graves, onde são mudados os curativos e é feita terapia física com anestesia, sem necessidade de usar as salas de cirurgia.

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