Geo Barents: o novo processo de desembarque seletivo é desumano, inaceitável e ilegal

O Geo Barents já partiu do porto de Catânia e, depois de algumas preparações, voltará ao Mediterrâneo central para resgatar migrantes em necessidade

Após 10 dias no mar e três à espera no porto de Catania, todos os sobreviventes a bordo do Geo Barents puderam finalmente assentar os pés em terra, no passado dia 8 de novembro, num local seguro, longe da violência e sofrimento que os levou a fugir da Líbia.
© Candida Lobes/MSF

Após 10 dias no mar e três à espera no porto de Catânia, todos os sobreviventes a bordo do Geo Barents puderam finalmente assentar os pés em terra, no passado dia 8 de novembro, num local seguro, longe da violência e sofrimento que os levou a fugir da Líbia.

Inicialmente, as autoridades italianas permitiram apenas o desembarque de 357 pessoas, deixando 215 a bordo, reféns de um debate político e de uma decisão ilegítima que as impediu de receber assistência e proteção na costa. Depois do desembarque seletivo, o estado físico e psicológico dos restantes sobreviventes deteriorou-se dramaticamente. Uma pessoa teve de ser retirada durante a noite de 6 para 7 de novembro, porque estava a sentir fortes dores abdominais. Outros sobreviventes mostraram também sintomas de ansiedade e ataques de pânico.

O processo de desembarque seletivo com base nas condições médicas dos sobreviventes e os sucessivos atrasos do desembarque levados a cabo pelas autoridades italianas são desumanos, inaceitáveis e ilegais, visto que, conforme o direito internacional marítimo, tem de ser concedido um desembarque seguro dentro de um período de tempo razoável aos sobreviventes resgatados em alto-mar. Nos instrumentos jurídicos e princípios gerais relevantes não existem critérios sobre as condições médicas das pessoas para o desembarque num local seguro. Pelo contrário, os Estados responsáveis devem ter em conta as circunstâncias difíceis de um resgate –  a situação a bordo e as necessidades médicas – e fazer tudo para minimizar o tempo que os sobreviventes passam no barco de apoio”, explica o coordenador-geral do projeto de buscas e salvamentos da Médicos Sem Fronteiras, Juan Matias Gil.

“Muitos sobreviventes suportam traumas passados, resultantes do abuso e da violência que enfrentaram na Líbia, nos países de origem, ou durante a viagem. Esta espera prolongada criou um grande sofrimento emocional e psicológico. A cada dia que passava, tornavam-se mais frequentes os episódios de insónias, ansiedade e aflição. Da nossa parte, não tínhamos respostas para lhes dar quando perguntavam porque é que não podiam desembarcar”, frisa a coordenadora da equipa médica da MSF no Geo Barents, Stefanie Hofstetter.

Youssouf* foi uma das 215 pessoas que não pode desembarcar. Na tarde do dia 7 de novembro, juntamente com dois outros sobreviventes, tomou a decisão desesperada de saltar do navio para a água, para tentar chegar ao cais do porto. A terceira pessoa voltou eventualmente a bordo, explicando à equipa da MSF que apenas saltara para salvar as outras duas, pois temia que se afogassem. Fora do navio, Youssouf e Ahmed passaram a noite no cais, recusando-se a comer ou a beber, à espera de uma decisão pelas autoridades italianas. 24 horas depois, Ahmed começou a apresentar sintomas de febre elevada e sinais de desidratação, tendo sido depois transportado para as instalações de saúde mais próximas, onde podia receber assistência médica pelas autoridades.

“Após dias e dias naquele barco [Geo Barents], comecei a dar em louco. Tive a sensação de que o meu corpo e os meus sonhos se estavam a separar. Estou grato por todo o apoio que recebi a bordo, mas já não conseguia aguentar mais”, conta Youssouf ao profissional da MSF que lhe prestou apoio no porto, em frente ao Geo Barents. “Parti do Norte da Síria para conseguir dar uma vida segura à minha família. Tenho quatro filhas que deixei para trás, na esperança de se poderem juntar a mim na Europa, num sítio seguro, em breve. A mais nova tem apenas seis anos de idade. Já viram bombas a cair na nossa cidade, e agora nem podem frequentar a escola devido à insegurança que persiste na área. Há grupos armados por todo o lado, a raptar pessoas e a pedir resgates. A situação está fora de controlo, e temo pela vida delas todos os dias. Quero simplesmente encontrar um sítio onde possam estar livres do medo e sentirem-se seguras. É esse o meu sonho, e não deixarei que o tirem de mim.”

Youssouf foi autorizado a desembarcar ao anoitecer do dia 8 de novembro, juntamente com os outros sobreviventes excluídos da desembarcação seletiva.

Akhtar*, um jovem bengali de 21 anos, contou à MSF que deixou o seu país há quase dois anos. O caminho que percorreu levou-o pela Síria, Líbia e, por último, ao mar Mediterrâneo, onde arriscou a vida num barco de madeira sobrelotado.

“Não tinha noção do quão difícil seria a viagem. Fiquei na Líbia durante mais de um ano, a viver num campo com pessoas de vários países. Éramos nove a dormir numa tenda com 10 metros quadrados, só com uma sanita para mais de 200 ou 300 pessoas. Um dia, a polícia chegou ao campo, prenderam muitos de nós e levaram-me para a prisão. Uns dias depois, deram-me um telemóvel e disseram que podia ligar à minha família. Nunca me esquecerei dos gritos da minha mãe ao telefone quando os guardas ameaçaram cortar a minha mão com uma catana e filmar tudo. A certa altura, a minha família conseguiu enviar todo o dinheiro que tinha para me libertar. Nunca me perdoarei por causar toda esta dor à minha mãe. Não falo com a minha família desde então. Não sabem se me afoguei no mar… Só lhes quero ligar e dizer que sobrevivi”, explicou Akhtar.

O Geo Barents já partiu do porto de Catânia e, depois de algumas preparações, voltará ao Mediterrâneo Central para resgatar migrantes em necessidade. Esta foi e sempre será a resposta da Médicos Sem Fronteiras às políticas negligentes nacionais e europeias de inação perante a situação dos migrantes em alto-mar, condenando-os a afogarem-se ou recusando desembarques em sítios seguros.

“Como organização humanitária, continuaremos as operações de salva-vidas no mar, seguindo o direito marítimo internacional, conforme o qual temos levado a cabo as nossas atividades até agora. Um resgate começa com retirar pessoas da água, e só é concluído quando todos os sobreviventes desembarcarem num local seguro”, acrescenta J. M. Gil.

A MSF tem realizado atividades de busca e salvamento no Mediterrâneo central desde 2015, trabalhando em oito navios diferentes (individualmente ou com outras ONG). Desde o início das operações com o Geo Barents, em 2021, a MSF resgatou 5 497 pessoas e recuperou os corpos de 11 que morreram em alto-mar.

 

*nome alterado para proteger a identidade dos sobreviventes.

Partilhar