Haiti: um dia no hospital de emergência de MSF em Porto Príncipe

Haiti: um dia no hospital de emergência de MSF em Porto Príncipe

Desde a sua abertura, no dia 27 de novembro de 2019, o hospital de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Tabarre, na capital haitiana Porto Príncipe, não para de receber pacientes. Especializado em atendimento a traumas de emergência, o hospital atingiu sua capacidade máxima de 25 leitos logo nas duas primeiras semanas. As necessidades médicas refletem um alto nível de violência, à medida que uma crise política e econômica continua em vigor no país. Desde setembro de 2018, manifestações generalizadas conhecidas como “peyilòk” (que significa “país bloqueado”) ocorrem em Porto Príncipe e outras regiões, com barricadas, protestos e confrontos.

São 9 horas da manhã de domingo, 8 de dezembro, quando o primeiro paciente do dia chega ao hospital de MSF.

É uma mulher de 29 anos com ferimentos a bala. Suas mãos estão inchadas e ensanguentadas. As equipes a atendem imediatamente. “Bandidos mandaram que ela juntasse as mãos antes de atirar nela duas vezes”, diz uma enfermeira. O raio X revela uma fratura dupla em cada mão.

O hospital possui critérios de internação rigorosos e recebe apenas pacientes que necessitam de atendimento de trauma emergencial. “Queremos focar nos pacientes que precisam de assistência vital, porque não temos capacidade ilimitada e queremos mobilizar nossos recursos para os casos mais importantes”, diz Jean-Fabrice Pietri, coordenador de projetos de MSF.

Tensões no país

Em setembro de 2019, começaram grandes manifestações em Porto Príncipe, com barricadas nas ruas que impediam as pessoas de se locomoverem. Foi difícil os hospitais obterem suprimentos e as ambulâncias conseguirem ir para onde era necessário.

Desde o final de novembro, houve uma relativa calmaria nas manifestações de peyilòk. Por exemplo, foi só no final de novembro que algumas escolas reabriram, depois de terem ficado fechadas durante meses, devido às tensões. No entanto, a situação no país permanece caótica.

O hospital foi inaugurado com uma capacidade inicial de 25 leitos, que foram rapidamente preenchidos quando os pacientes chegaram nas duas primeiras semanas. “Sabíamos que estávamos atendendo a uma necessidade existente aqui, em termos de casos graves e urgentes, mas obviamente a situação é ainda pior do que imaginávamos, então, teremos que nos adaptar mais rápido do que esperávamos”, diz Pietri. Nas primeiras três semanas, mais de 250 pessoas passaram pela triagem do hospital, das quais mais de 100 foram hospitalizadas. A equipe teve que acrescentar mais leitos rapidamente para lidar com o alto número de pacientes, e o hospital está se aproximando da capacidade planejada de 50 leitos.

Jean-Baptiste, o segundo paciente do dia, foi ferido em um acidente de moto. Ele foi atingido pelo para-choque de uma van e sofreu ferimentos ao ser arrastado por vários metros. Ele tem uma grave fratura exposta na tíbia direita, queimaduras nas mãos e perdeu muito sangue.

Depois que ele foi estabilizado e sua perna, radiografada, foi levado rapidamente para a sala de cirurgia. “No caso dele, o que vimos foi uma ferida muito extensa na parte posterior da perna, onde ele perdeu toda a pele”, disse Thomas Schaefer, cirurgião ortopédico. “Há uma fratura exposta na tíbia e, portanto, você tem fáscia, músculo e osso à vista, o que torna este um caso muito complexo.”

O paciente necessita de um fixador externo para manter seu osso quebrado no lugar, enxertos de pele e um longo período de hospitalização. Como as feridas deixaram seus nervos e artérias praticamente intactos, a equipe que o tratou acreditou ser provável que sua perna se curasse.

Como Jean-Baptiste, as pessoas internadas em Tabarre frequentemente requerem vários dias ou até semanas de hospitalização, devido à gravidade de seus ferimentos e ao número de cirurgias necessárias para sua recuperação.

Clotilde, 52 anos, foi atingida por uma bala perdida na perna direita durante um confronto entre gangues rivais. Ela foi primeiro ao centro de emergência e estabilização de MSF em Martissant, antes de ser transferida para o hospital de MSF em Tabarre. Infelizmente, a bala atingiu os principais vasos sanguíneos e as equipes de MSF não puderam salvar sua perna, que teve que ser amputada. Os ferimentos a bala representam mais da metade das internações no hospital.

No entanto, alguns pacientes podem ser estabilizados, tratados e receber alta após apenas uma curta estadia no hospital. É o caso de Jameson, que chegou um pouco depois das 11 horas daquele domingo, em choque e com uma grande ferida no ombro esquerdo.

Ele tem 28 anos de idade, é pai de três filhos e foi atacado enquanto jogava dominó com os amigos. Ele levou várias facadas. “Não conhecemos a arma e não sabemos a profundidade e onde exatamente pegou a ferida. Isso requer que o paciente seja hospitalizado, enquanto estiver em risco. Após um período de observação, o paciente pode receber alta se, por meio de nosso monitoramento, tivermos certeza de que não há complicações”, diz Thierry Binda, coordenador médico.

A radiografia de Jameson revelou que não havia danos nos pulmões e, após o tratamento e dois dias no hospital, ele conseguiu voltar para casa.

Outros casos requerem cirurgia de grande porte, como no caso desse jovem de 26 anos de idade, que chegou ao hospital às 13 horas. Ele foi gravemente ferido por uma arma de fogo e, durante o exame clínico, o médico notou uma ferida aberta na altura do abdômen, sem encontrar a marca de saída da bala.

O paciente estava consciente, mas não conseguia mover as pernas. Primeiro, a equipe de MSF inseriu um tubo torácico para evitar complicações relacionadas ao sangramento contínuo. Depois, realizou uma radiografia e uma laparotomia, examinando o abdômen para determinar quanto dano a bala causou.

A cirurgia não mostrou danos aos órgãos vitais – a bala atingiu por pouco o fígado. A radiografia confirmou as hipóteses iniciais no pronto-socorro: a bala não saiu e ficou alojada na coluna do paciente.

Ele foi, então, transferido para a unidade de terapia intensiva do hospital. “Existe um dano potencial aos músculos abdominais, juntamente com a paraplegia, o que pode dificultar ainda mais a respiração”, diz Elsa Carise, médica anestesista da UTI. “Isso requer monitoramento constante e muito mais cuidados de enfermagem e possivelmente atenção médica do que os pacientes normalmente recebem em um hospital”.

A gravidade dos ferimentos a bala depende de vários fatores, incluindo o caminho que a bala faz, pois pode danificar órgãos e vasos sanguíneos. O caso deste jovem não é incomum. “Recebemos muitos casos de ferimentos a bala no peito e no abdômen”, diz Katherine Holte, cirurgiã de MSF. “Com a equipe de cirurgia visceral, conseguimos salvar a vida de muitos pacientes. São feridas, buracos no abdômen, que, sem cirurgia, não podem se curar sozinhos. Portanto, é evidente que salvamos muitas vidas aqui.”

 

 

 

 

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