A Jornada dos Migrantes Invisíveis da América Central

A migração é um fenômeno de longa data ao redor do mundo. Há várias teorias para explicar as razões porque determinado grupo de uma população se desloca de uma localidade para outra. Por definição, um migrante é uma pessoa que escolheu se deslocar não por causa de uma ameaça direta de perseguição ou morte, mas principalmente para melhorar sua vida através de oportunidades de trabalho ou, em alguns casos, de educação, reunião familiar, entre outras razões(1). Diferente de refugiados, que não podem retornar com segurança a seus locais de origem, migrantes em geral não enfrentam esse tipo de impedimento. Se eles escolherem retornar, eles continuarão recebendo a proteção de seus governos. No entanto, no caso do Triângulo do Norte da América Central, essas definições, tão bem definidas em teoria, tornam-se desfocadas e confusas. Mesmo que essas pessoas busquem uma vida melhor, elas também são afetadas por níveis crescentes de violência urbana em seus países de origem, o que as leva a seguir para diferentes países, como o México e os Estados Unidos.

Transmigrante é um termo usado para uma pessoa que está passando por um país durante o processo de emigração para um país terceiro. No cenário atual, transmigrantes são frequentemente invisíveis – temendo perseguição das autoridades dos países pelos quais estão passando – e vulneráveis a uma variedade de fatores: desde exaustão física e mental, fome e exposição a doenças, até violência e abusos.

A jornada em busca de uma vida melhor é tão perigosa quanto a violência e morte das quais escaparam em seus países de origem na medida em que se tornam novamente alvo durante a fuga. São vítimas ideais, com parentes que podem ser extorquidos, e não possuem status legal, portanto, estão menos dispostos a denunciar crimes sérios como agressão, extorsão ou sequestro. Eles também estão vulneráveis a tráfico humano; a indústria da prostituição ao longo da fronteira entre o México e a Guatemala é suprida principalmente por migrantes, especialmente adolescentes, algumas das quais em condições análogas à escravidão na medida em que não podem pagar dívidas contraídas com traficantes.

Em 2016, o International Crisis Group publicou que “o México repeliu 166 mil migrantes centro-americanos, incluindo 30 mil crianças e adolescentes, e os Estados Unidos deportou mais 75 mil”. Cidadãos do México e das regiões do Triângulo Norte da América Central (TNAC) há tempos buscam uma vida melhor em outros países, mais por razões econômicas do que para escapar de situações de insegurança em seus países. Esse quadro mudou dramaticamente nos últimos anos na América Central. Enquanto não podemos excluir as razões econômicas para essa migração, o fato permanece que no atual contexto em Honduras, Guatemala e El Salvador, pessoas que querem sobreviver e viver não têm escolha a não ser buscar refúgio em outros lugares.

Muitos dos que são vítimas de miséria econômica e exclusão social também enfrentam perseguição por grupos ligados ao crime organizado, desde gangues locais a traficantes de drogas transnacionais. O deslocamento forçado é cada vez mais comum, à medida que a violência alcança níveis de uma guerra civil. O mesmo relatório publicado pelo International Crisis Group aponta que 150 mil pessoas foram mortas no Triângulo Norte da América Central desde 2006, uma média de mais de 50 homicídios para cada 100 mil pessoas, mais que o triplo do México (onde o número de mortes aumentou significativamente desde 2007) e mais de 10 vezes a média estadunidense.

A região do TNAC é conhecida pela presença de alguns dos países mais violentos do mundo. El Salvador teve uma taxa de assassinatos de 103 para cada 100 mil habitantes em 2015, enquanto Honduras teve 57 para cada 100 mil e a Guatemala 30 para cada 100 mil(2). A proporção de vítimas de homicídio abaixo de vinte anos em El Salvador e Guatemala é maior do que em qualquer outro lugar do mundo. Em 2015, 35 mil crianças e adolescentes migrantes foram detidos no México, nove vezes mais que em 2011.

As pessoas que viajam através desses países têm sido consideradas invisíveis – não somente para escapar da vigilância das autoridades, mas também de diversas entidades criminosas. Essa invisibilidade faz com que se tornem mais vulneráveis: dificuldades em buscar abrigo e trabalho, meios de subsistência e cuidados de saúde. Os que sofreram abuso temem represálias de organizações criminosas, extorsão por parte das autoridades e serem vistos como imigrantes “ilegais”.

Em 2015, Médicos Sem Fronteiras através da Unidade Médica Brasileira (BRAMU) participou de uma pesquisa utilizando uma ferramenta de medição de vitimização (VAT). Com a presença de MSF no México, notamos que 50,3% dos pacientes transmigrantes indicaram um ou mais fatores relacionados à violência como causa da migração(3). Esses fatores compreendem os casos de agressão, extorsão, tentativas de recrutamento pelas “maras” e gangues e violência generalizada.

As equipes de MSF testemunham diariamente a crise humanitária que leva migrantes a escaparem através do México com o objetivo de alcançar os Estados Unidos. Apesar da mídia e dos governos insistirem em se referir a essa situação como um “problema de imigração”, o que realmente enfrentamos é uma situação de “migração forçada” por condições de violência, que deveriam ser abordadas da perspectiva do direito de buscar refúgio em países de trânsito e de destino (México e Estados Unidos)(4).

As razões para saírem de seus países, que surgem durante entrevistas e consultas de psicologia realizadas por MSF, estão relacionadas aos fatores de expulsão que o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) inclui na lista de motivos que devem ser considerados no reconhecimento do status de refúgio; e de fato, estão registrados no quadro legal da Lei Mexicana.

A lei sobre Refugiados, Proteção Complementar e Asilo Político publicada em 27 de janeiro de 2011 contém, dentre outros benefícios, reconhecimento de situações associadas àquilo que MSF e outros atores humanitários chamam de “Outras Situações de Violência”, incluindo aquelas descritas no Artigo 13, parágrafo 2: “violência generalizada”, “violação maciça de direitos humanos” e “outras circunstâncias que perturbaram gravemente a ordem pública”.

É, portanto, surpreendente que o Estado mexicano tenha reconhecido o status de refugiado a tão poucos migrantes forçados da América Central. De acordo com o ACNUR, apesar de 70% dos solicitantes de refúgio serem da América Central, apenas 26% deles foram reconhecidos como refugiados. De um total de 1.296 solicitantes no México, 266 foram aprovados. De 883 solicitações de indivíduos de Honduras, El Salvador e Guatemala, menos de 150 foram reconhecidos. Isso em comparação com um fluxo anual de migrantes forçados estimado em pelo menos 35 mil pessoas.

Nos Estados Unidos os números não são mais encorajadores. Durante o ano fiscal de 2013, 69.930 refugiados de todo o mundo foram reconhecidos, dos quais somente 6% (cerca de 4 mil) eram de países da América Latina, muitos deles de Cuba, país com maior prioridade.

Além disso, há preocupação de que a implementação do Plano Fronteira Sul irá desencadear o aumento do número de deportações ou “repatriamentos” de cidadãos centro-americanos, especialmente do Triângulo Norte. Isso levanta sérias dúvidas sobre a observância do princípio de não repulsão (artigo 5 da Lei Mexicana) em caso de fundados temores de perseguição, abuso ou tortura em seus países de origem. Desde o início de sua implementação em julho de 2014, o Plano Fronteira Sul resultou em um aumento maciço de operações de segurança, com um incremento de 85% no número de apreensões de migrantes rumo ao norte(5). Apesar disso, há ainda um movimento contínuo nas fronteiras, enriquecendo contrabandistas e colocando em perigo aqueles que saem de seus países com tão pouco.

MSF tem promovido debates e discussões em diversos temas relacionados à migração em diferentes partes do mundo. A organização vem chamando agências e governos a aderirem aos direitos humanos básicos e dignidade. Em 2015, durante o Dia Mundial do Refúgio (20 de junho), MSF convidou atores estatais, humanitários e agências internacionais operando na região para chamar atenção à existência de um fluxo significativo de “migrantes forçados” fugindo da violência no TNAC, cujos status de refugiado devem ser cuidadosamente analisados de acordo com tratados internacionais para a proteção desses indivíduos, assinados por México e Estados Unidos. Além disso, MSF se dirigiu ao Estado mexicano no sentido de que o mesmo garanta os meios para que os agentes responsáveis pela implementação da Lei de Refugiados e do Ato de Migração possam lidar com o processamento de solicitações de refúgio e proteção realizadas por migrantes do TNAC, de acordo com os critérios estabelecidos na Lei de Refugiados e Proteção Complementar. MSF também solicitou a revisão e avaliação da compatibilidade dos componentes do Plano Fronteira Sul e outros dispositivos de segurança nacional aplicados nas fronteiras, que privilegiam deportações imediatas sem que oficiais de imigração ofereçam aos centro-americanos a oportunidade de solicitar refúgio. Finalmente, foi pedido que governos e agências internacionais estabeleçam e implementem protocolos apropriados para que de forma sistemática e proativa, os agentes responsáveis pela aplicação da lei de imigração e da Lei de Refugiados investiguem através de algum contato ou entrevista com cidadãos da América Central alguma condição que envolva violência ou que esteja fundada em temores de violência.

O México é um país de emigração, imigração e transmigração – uma consciência que deve levar à adoção de políticas migratórias integradas e coerentes, não somente reativas aos Estados Unidos. Essas políticas deverão ser baseadas nos princípios que permitem a países desenvolvidos e em desenvolvimento uma abordagem racional do tema. O dispositivo da deportação continuará a ser uma porta giratória a não ser que os países do TNAC sejam também apoiados a fazer algo diferente do que despejar migrantes – particularmente crianças – de volta aos bairros onde as maras levaram as taxas de homicídio a níveis recorde.

Enquanto o êxodo continua, pouco foi feito no que se refere a políticas de proteção para as pessoas que tomam a iniciativa para escapar não somente da pobreza, mas de situações de violência em seus países de origem – tráfico humano, abuso das autoridades e outros fatores que as agridem. Enquanto isso continuar, os transmigrantes que empreendem essa jornada permanecerão desconhecidos e invisíveis.

1. UNHCR viewpoint: ‘Refugee’ or ‘migrant’ – Which is right?
2. Easy Prey: Criminal Violence and Central American Migration 28 July 2016
3. FORCED TO FLEE. CENTRAL AMERICA’S NORTHERN TRIANGLE: A NEGLECTED HUMANITARIAN CRISIS Medicins Sans Frontieres Updated June 14, 2017
4. Ibid
5. WOLA – Washington office for Latin America, May 2017