Leer, no Sudão do Sul: “Quando caminho pelas alas queimadas do hospital, tento não olhar”

A destruição do hospital de MSF contada por uma profissional da organização

O hospital de MSF em Leer, no Sudão do Sul, foi destruído por agressores desconhecidos há quatro meses. A coordenadora de projeto de MSF, Sarah Maynard, descreve a devastação que testemunhou em seu retorno e os esforços das equipes para que os serviços médicos voltassem a funcionar novamente.

Quando retornei ao hospital em fevereiro, os primeiros momentos foram muito chocantes; o lugar onde eu havia passado todo o meu tempo, e onde a equipe trabalhou tanto, dia e noite, foi completamente destruído, queimado e saqueado.
 
O que mais me impressionou foi a ausência de vida e movimento – eu nunca tinha visto o hospital sem pacientes, profissionais, barulho, ou mesmo bebês chorando. Partes do hospital foram tão destruídas que eu mal podia reconhecê-las. Todas as camas foram saqueadas. Nós tivemos que subir sobre pilhas de materiais cirúrgicos danificados para olhar dentro do centro-cirúrgico, onde vimos frascos quebrados e suprimentos espalhados pelo chão. Uma das mesas de operação foi queimada, a outra danificada.
 
Nas tendas e armazéns, todo o nosso estoque – que duraria por meses – fora levado ou destruído: todos os medicamentos, curativos, vacinas, alimento comida terapêutica e testes laboratoriais também foram queimados, saqueados ou espalhados pelo chão, além dos registros dos pacientes e os equipamentos médicos danificados.
 
Nós conseguimos falar com nossos profissionais sul-sudaneses que fugiram para a mata. O que eles me disseram foi terrível – eles estavam temendo por suas vidas e, apesar de a equipe ter conseguido evacuar alguns pacientes cirúrgicos e levar algum suprimento consigo para estruturar clínicas na mata, não havia outros cuidados de saúde disponíveis nem água limpa, e os alimentos eram poucos.
 
Na medida em que as pessoas começaram a retornar à cidade, nós retomamos algumas atividades em maio. Estava claro que as necessidades médicas das pessoas eram enormes e não havia nenhum outro tratamento médico disponível por quilômetros. Também estava claro que seria extremamente difícil recomeçar a trabalhar em um hospital que havia sido incendiado. Dezenas de pacientes esperavam em silêncio nos bancos do ambulatório; alguns vieram até dormir dentro do hospital, esperando que nós os internássemos logo.
 
Foi extremamente difícil explicar que não podíamos oferecer todos os nossos serviços porque não tínhamos medicamentos nem equipamentos para tratá-los apropriadamente. Mas as pessoas continuavam a chegar, muitas com doenças diretamente relacionadas às condições de vida na mata, como malária, diarreia aquosa aguda e infecções do trato respiratório.
 
Primeiramente, a equipe médica sentou no chão para realizar as consultas, já que não tínhamos móveis – nem uma cadeira, nem uma mesa. Nós fizemos uma triagem nutricional, com resultados alarmantes, e iniciamos um programa de nutrição para crianças com menos de cinco anos com desnutrição severa. Centenas de mães trouxeram seus filhos para pesagem e medição – lembro-me de pensar que poderíamos admitir até 500 crianças ao final da primeira semana. No final das contas, foram 900.  

Nós limpamos pouco a pouco – primeiramente, tentando nos livrar dos morcegos que passaram a habitar as enfermarias, depois limpando os medicamentos, frascos e equipamentos quebrados, em seguida tentando fazer com que a energia e a água funcionassem novamente. Nós encontramos um buraco de bala de fogo na tubulação de água e o painel de controle da bomba de água havia sido arrancado da parede. Enquanto isso, a equipe retirava água do poço e carregava em galões. Foi um grande dia quando nossa equipe de logística conseguiu fazer com que a água voltasse a funcionar.
 
Mas sempre que era dia de limpar e repor nossos suprimentos não podíamos internar nem mesmo os pacientes mais doentes. Apesar de não termos mesa de parto, mães chegavam e davam à luz no chão, querendo, pelo menos, ficar perto de equipes médicas.
 
Um dia, um membro da equipe apontou para um corpo morto estirado do lado de fora do hospital. Era um homem que vimos no ambulatório e que tinha suspeita de tuberculose (TB). Nós não pudemos admiti-lo na enfermaria, mas ele ficou do lado de fora dos portões do hospital, porque ainda queria nossa ajuda. Ele não tinha nenhum cuidador e morreu sob uma árvore.
 
Nós progredimos muito desde então. Estamos administrando serviços médicos no hospital já há oito semanas e estamos atendendo quase 1.300 pacientes toda semana. A ala de internação foi reaberta, embora os pacientes estejam deitados em colchões no chão, já que não temos camas. Nós internamos mais de 2.500 crianças com desnutrição severa em nosso programa de nutrição – e algumas já receberam alta, tendo alcançado suas metas de peso. Estamos usando mais de 800 kg de alimento terapêutico por dia – todo o estoque teve de ser enviado por avião para substituir os suprimentos que foram saqueados. A maternidade abriu oficialmente na semana passada. Agora, as mães podem dar à luz em mesas de parto.
 
Ainda estamos limpando o hospital. Quando passo pelas partes incendiadas, tento não olhar. É muito triste pensar em todas as pessoas que ficaram sem tratamento de saúde por tantos meses após a destruição. Agora, quero me concentrar nas partes em que há vida novamente, com barulhos, movimentos e vidas sendo salvas.”

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