Migrar uma vez não é suficiente para encontrar estabilidade ou segurança na América do Sul

As jornadas dos migrantes na América do Sul quase nunca são diretas. Numa espiral de desafios, o processo de migrar pode envolver regressar aos países de origem, ou até ter de procurar novos destinos. A Médicos Sem Fronteiras (MSF) recolheu as histórias de algumas pessoas que enfrentaram isso mesmo

Ilustração - migrações
© MSF

Migrar para outro país nunca foi um processo fácil. Na América do Sul, quem parte de casa em busca de segurança ou estabilidade noutro sítio – muitas vezes, longínquo – arrisca-se a fazê-lo mais do que uma vez. As jornadas dos migrantes quase nunca são diretas. Numa espiral de desafios, o processo de migrar na América do Sul pode envolver regressar aos países de origem, ou ser forçado a ir para outros países, ou até mesmo ter de procurar novos destinos. A cada passo em frente, os migrantes enfrentam o risco de violência, fome, problemas de saúde ou a separação de entes queridos. Os momentos de angústia são quase garantidos.

As pessoas oriundas de países da América do Sul e Caraíbas compõem uma larga percentagem de todos os deslocados mundialmente. Segundo o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), dois em cada cinco novos pedidos de asilo em 2022 foram apresentados por cidadãos desta região.

Migrar é um fenómeno multidirecional, que pode significar muitos movimentos entre sítios diferentes. Na América do Sul, o regresso de migrantes aos países de origem, a readmissão em países terceiros e o processo de integração nas sociedades e comunidades do destino são uma parte natural da mobilidade internacional.

Migrações América do Sul
Migrantes fazem fila em Danlí, Honduras, onde a MSF presta apoio médico, psicossocial e serviços de promoção de saúde. © MSF/Laura Aceituno

Conforme a Organização Internacional para as Migrações, tudo isto acontece em parte devido ao aumento do custo de vida e das altas taxas de desemprego na região, que têm afetado os processos de integração e reconstrução das vidas dos migrantes nos países anfitriões na América do Sul e nas Caraíbas.

“Na maioria dos países da região que recebem migrantes de países como a Venezuela, Cuba e o Haiti não tem havido qualquer tipo de integração legal ou económica efetiva de migrantes. Por causa disto, nos últimos anos tem havido um aumento das pessoas que regressam aos países de origem, assim como um fluxo reforçado de pessoas que fogem para outros países, como os Estados Unidos”, explica a representante de advogacia da MSF na América Latina, Marisol Quiceno.

 

O direito a uma família reunida

Mayner Rodríguez, psicóloga na clínica da MSF em Danlí e Trojes, nas Honduras, já ouviu imensas histórias que não são reproduzidas em media genéricos. Histórias de pessoas que já foram forçadas a migrar várias vezes e a enfrentar todas as consequências disso: separação familiar, agressões físicas e violência sexual.

“A separação familiar deixa, muitas vezes, cicatrizes emocionais”, sublinha Mayner. “Atendi um jovem rapaz que procurava apoio, porque os pais tinham morrido. Ficou sozinho com os três irmãos e estavam todos a tomar conta uns dos outros. Quando os pais morreram, foi forçado a migrar para conseguir apoiar os irmãos. Na consulta, o rapaz disse-me que tinha imensas saudades da avó e lidava com isso rezando imenso, todos os dias, pelos irmãos mais novos e pela família.”

Migrações - Darien
No mês de agosto de 2023, houve 2 000 a 3 000 pessoas a atravessar todos os dias a selva de Darién, que liga a Colômbia ao Panamá. © Natalia Romero Peñuela/MSF

A psicóloga destaca também a situação de pessoas provindas do Haiti. Já prestou apoio a haitianos que haviam partido de casa há mais de 10 anos em busca de estabilidade em países como o Chile, ou o Brasil, que se sentiam profundamente afetados por não ver a família. Porém, contaram também a Mayner que regressar ao Haiti seria extremamente difícil, pois apesar de haver um grande custo emocional associado a estar longe da família, migrar não deixa de fazer sentido de um ponto de vista económico.

 

Na consulta, o rapaz disse-me que tinha imensas saudades da avó e lidava com isso rezando imenso, todos os dias, pelos irmãos mais novos e pela família.”

– Mayner Rodríguez, psicóloga da MSF

 

Num abrigo para migrantes na Cidade do México, Fraklin Matute, 40 anos, natural das Honduras, explica que não viajava com a família por temer ser perseguido pelas autoridades.

“Já viajei sem nada para comer, e já fui mal tratado pelas autoridades muitas vezes. Dormi 22 dias em cima de folhas de cartão num parque. Mas o mais difícil foi deixar a minha família, magoa-me imenso. Não é fácil construir um lar durante tantos anos e depois deixá-lo de um dia para o outro. Os meus filhos sentem a minha falta, também lhes custa imenso”, frisa. Franklin já foi obrigado a parar várias vezes durante o percurso, ou porque lhe faltam recursos, ou devido a barreiras legais.

 

O mais difícil foi deixar a minha família, magoa-me imenso. Não é fácil construir um lar durante tantos anos e depois deixá-lo de um dia para o outro.”

– Fraklin Matute, migrante hondurenho na Cidade do México

 

Marisol, representante de advogacia da MSF, mostra-se preocupada com o “aumento de crianças e adolescentes não acompanhados, que viajam sozinhos, sem pais ou outros parentes e que não estão sob os cuidados de nenhum adulto responsável”.

“A unidade familiar garante o desenvolvimento integral dos menores, que necessitam de apoio psicológico e proteção familiar para evitar traumas que possam afetar o seu desenvolvimento pessoal e social”, continua Marisol. “Não podemos esquecer que o reagrupamento familiar é um direito dos migrantes para manter a unidade da família no mesmo país. Sob nenhuma circunstância crianças ou adolescentes devem ser separados das famílias, seja por força ou migração voluntária”,

 

Voltar depois de partir

Haiti - Insegurança
A capital do Haiti, Port au Prince, tem sido afetada pela violência entre grupos armados, gerando um clima de insegurança na cidade. © Pierre Fromentin/MSF

Eduardo González vive atualmente na cidade de Tumbes, Peru, e sabe muito bem o que é sentir saudades da família a milhares de quilómetros de distância e não ser capaz de fazer nada quanto a isso. Em 2018, quando partiu de casa na Venezuela para o Chile, passou por experiências terríveis: dias sem comer, noites dormidas em parques, centenas de quilómetros caminhados, roubos e maus tratos na rua. A gota de água caiu no Chile, em Iquique, enquanto trabalhava num restaurante como assistente de cozinha sem receber apoios ou acesso a cuidados de saúde. Não teve outra escolha senão voltar para casa.

“Trabalhava 14 horas por dia, muitas vezes sem comer, porque o dono do restaurante proibia-me de o fazer. Um dia, fiquei tão desidratado que me afetou os rins e tive dores terríveis. Só podia entrar na residência onde estava hospedado depois da meia noite, então tive de aguentar sentado na rua. A única maneira de ser tratado no hospital era como um sem abrigo e só me deram remédios para aliviar temporariamente a dor. Uma noite houve um sismo, os alarmes dispararam e eu tentei fugir de casa, mas a dor deixou-me desamparado no chão. Naquele momento, decidi voltar para o meu país, para estar com a minha família.”

 

Trabalhava 14 horas por dia, muitas vezes sem comer, porque o dono do restaurante proibia-me de o fazer. Um dia, fiquei tão desidratado que me afetou os rins e tive dores terríveis. Só podia entrar na residência onde estava hospedado depois da meia noite, então tive de aguentar sentado na rua.”

– Eduardo González, migrante venezuelano no Peru

 

Manu, 40 anos, ficou no Haiti enquanto que muitos dos familiares migraram devido à violência no país. O maior desejo de Manu é reunir-se novamente com a família. Conta que quando a situação no Haiti piorou, a primeira e única coisa em que pensou foi a filha. “O meu bebé, a minha princesa… só quero que ela viva bem. Chama-se Christy e consegui com que fosse para Santo Domingo [capital da República Dominicana], mas estamos longe e só falamos por videochamada. A minha mulher, o meu filho e a minha filha já têm passaportes e queremos encontrar-nos novamente. Sonho em ter o meu próprio negócio, mas nestas condições, não tenho sido capaz de torná-lo realidade e preciso de estar com a minha família primeiro”.

José Rafael Cumare tem 38 anos e migrou pela primeira vez da Venezuela para viver na Argentina por três anos. Esperando que a situação tivesse melhorado no país, regressou à Venezuela no ano passado. Mas não foi o que esperava: a crise continuava e teve de se despedir novamente da família, desta vez para tentar atravessar a selva de Darién na tentativa de migrar para os Estados Unidos. “Demorei 13 dias para atravessar o Darien. No segundo dia na selva, parti o meu calcanhar e tive de fazer muletas com alguns paus que encontrei. Passei 11 dias magoado. Comia o que as pessoas me davam, e tomei – sem saber o que eram – uns medicamentos que me deram para aliviar a dor. Dentro da selva ouvi e vi coisas terríveis. Vi assaltos violentos, vi pessoas mortas. Todos deviam saber que não é fácil atravessar esta selva”.

Tanto Manu como Eduardo trabalham com a MSF. Manu presta assistência médica a pessoas afetadas pela violência no Haiti. Eduardo trabalha no Peru a fornecer apoio a migrantes em Tumbes. Depois de voltar do Chile para a Venezuela, Eduardo candidatou-se a um emprego no projeto da MSF em Anzoátegui, na área de logística. “É gratificante ajudar as pessoas que, como eu, migraram e não tiveram apoio com os problemas de saúde.”

Como Manu e Eduardo, a MSF já testemunhou as consequências da migração forçada, ao longo de rotas inseguras e perigosas. Fica claro que a criminalização da migração e as políticas restritivas só pioram as consequências humanitárias para os migrantes. A vida tornou-se mais difícil para milhares de migrantes que atravessam a América do Sul e Central em busca de uma vida melhor. São muitas vezes forçados a tomar rotas perigosas, colocando-se a si mesmos e as famílias em risco.

 

Na América do Sul, a MSF providencia cuidados médicos e humanitários em países como o Peru, Brasil, Colômbia, Venezuela, Haiti, Guatemala e México.

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