Moçambique: “Após anos deslocadas, famílias a regressar a Mocímboa da Praia enfrentam a destruição total.”

“As condições difíceis das pessoas deslocadas são, muitas vezes, o foco das atenções em Cabo Delgado, mas frequentemente a vida para as regressadas é igualmente difícil, e as necessidades que têm podem ser muito semelhantes”

© Nuria Lopez Torres/MSF

Enquanto quase 630 000 pessoas continuam deslocadas pelo conflito em Cabo Delgado, no Norte de Moçambique, mais de 540 000 que foram antes forçadas a deslocar-se já regressaram às zonas de origem. A vila costeira de Mocímboa da Praia e outras partes do distrito, profundamente afetadas pela violência, voltam agora a acolher muitas destas pessoas regressadas. Luis Angel Argote, coordenador da Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Mocímboa, explica os desafios de reconstruir a vida do zero com os fantasmas do passado.

Entrada do Centro de Formação de Saúde de Mocímboa da Praia. © Nuria Lopez Torres/MSF

 

Que situação é que as pessoas regressadas encontraram em Mocímboa?

Os primeiros ataques em Cabo Delgado ocorreram em Mocímboa da Praia em 2017 e foram seguidos por mais violência grave. Em 2020, a vila foi tomada por membros de um grupo armado não estatal, mas em agosto de 2021 as forças armadas moçambicanas e ruandesas retomaram o controlo. Desde então, regressaram cerca de 176 000 pessoas que tinham fugido do distrito, na sequência de melhorias na situação de segurança, de acordo com números das Nações Unidas.

Atualmente, Mocímboa tem o maior número de pessoas regressadas em Cabo Delgado, e é a área de retorno com maiores necessidades, seguida pelo distrito vizinho de Palma, onde se situa o megaprojeto de gás natural liquefeito (Liquefied Natural Gas-LNG) – o maior investimento privado em África – e que foi o centro dos ataques em 2021 que atraíram atenção mediática internacional.

Quando regressaram a Mocímboa, anos após terem estado deslocadas, as famílias foram confrontadas com um cenário de destruição total. A maior parte dos edifícios públicos, incluindo as escolas, hospitais e centros de saúde e infraestruturas de água, estava destruída, assim como lojas, mercados, bancos… quase todos os edifícios foram atingidos por pelo menos uma bala ou ficaram queimados em alguma extensão. A maioria das famílias teve de enfrentar a dura realidade de depender da assistência humanitária. As pessoas não têm empregos nem perspetivas para o futuro.

Para muitas pessoas regressadas, voltar significou recomeçar do zero. As propriedades – as casas e as “machambas” (plantações de arroz ou milho) – ficaram danificadas devido ao conflito, ou por animais selvagens, ou simplesmente devido à passagem do tempo. A maioria das pessoas fugiu naquela manhã com quase nada, exceto talvez um cobertor ou as roupas que tinham no corpo. Ao regressar, muitas esperavam encontrar alguns pertences em casa, mas não sobrou nada. A maioria das casas fora saqueada. Em alguns casos, as pessoas tiveram de se instalar com amigos ou familiares e ainda continuam com eles. Tiveram de reconstruir as casas usando lama, paus e coberturas de plástico.

 

Para muitas pessoas regressadas, voltar significou recomeçar do zero.” – Luis Angel Argote, coordenador da Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Mocímboa.

 

Apesar de a situação de segurança ter melhorado pouco a pouco, as pessoas ainda temem possíveis ataques quando vão às “machambas”, o que as mantém longe dos meios de subsistência.

 

Quais são as principais necessidades das famílias que regressam a Mocímboa?

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Escola em Mocímboa da Praia destruída durante o conflito. © Nuria Lopez Torres/MSF

As condições difíceis das pessoas deslocadas são, muitas vezes, o foco das atenções em Cabo Delgado, mas frequentemente a vida para as regressadas é igualmente difícil, e as necessidades que têm podem ser muito semelhantes. Estas pessoas estão a pedir principalmente apoio com a comida, água, abrigo, cuidados de saúde, incluindo saúde mental, e educação. A MSF continua a ser uma das poucas organizações humanitárias ou entidades a providenciar assistência na região, e é crucial que seja mobilizado ainda mais apoio.

A maior parte da infraestrutura de saúde ficou destruída e precisa de ser reconstruída para garantir o acesso a cuidados médicos. São necessários urgentemente mais profissionais de saúde, medicamentos e equipamentos médicos, para que os centros de saúde e o hospital voltem a funcionar. Os pacientes têm de esperar longas horas e, muitas vezes, têm de partilhar camas devido ao número insuficiente de profissionais e instalações disponíveis. Apenas um em cada sete centros de saúde funcionais antes do conflito está a prestar serviços atualmente, e a reabilitação do principal hospital e do serviço de maternidade no distrito ainda está pendente. Os condutores de ambulâncias também ainda não se sentem confortáveis para responder a emergências durante a noite devido a preocupações com a situação de segurança.

O conflito teve um impacto significativo na saúde mental das pessoas. Regressar significou reviver os traumas antes enfrentados. Os ataques foram brutais e ninguém escapou à violência. Houve muitas pessoas cujos pais, irmãos, avós, filhos, amigos e vizinhos foram assassinados, decapitados ou mortos a tiro; muitas viram-no acontecer com os próprios olhos. Algumas perderam a família inteira. Mais de 50 por cento dos pacientes que assistimos nas nossas sessões de saúde mental tiveram a separação ou a perda de entes queridos como evento precipitante, e 19 por cento foi vítima direta da violência. Observámos casos de pessoas idosas a tomar conta dos netos, ou que perderam a família inteira durante o conflito. Vimos crianças orfãs a tomar conta de outras crianças mais novas.

Para a maioria das famílias, cada dia é um desafio para conseguir algo para comer, apesar dos esforços de algumas organizações humanitárias e da solidariedade na comunidade. Algumas pessoas cultivam o que conseguem perto de casa, porque já não se atrevem a cuidar de plantações na floresta devido a preocupações com a segurança. A comida é racionada dentro de cada família. Se não fossem os solos férteis de Mocímboa e o acesso ao mar e a rios para pescar, muitas pessoas enfrentariam a fome. Algumas conseguiram mesmo assim fazer redes para pescar, ou comprar sementes e machetes para plantar e, lentamente, começaram a reconstruir a vida.

 

O conflito teve um impacto significativo na saúde mental das pessoas. Regressar significou reviver os traumas antes enfrentados.” – Luis Angel Argote, coordenador da Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Mocímboa.

 

A rede de água de Mocímboa também foi destruída. De 102 fontes e furos de água públicos avaliados pela MSF na vila, apenas 23 estão a funcionar – cinco deles recentemente construídos pelas equipas da MSF. Isto significa que, para uma população de mais de 53 500 pessoas na vila de Mocímboa, o rácio aqui é de um ponto de água para aproximadamente 2 300 pessoas. Para aceder a água segura, as famílias têm de andar quilómetros e esperar horas numa fila para encher o máximo de baldes que conseguem. A falta de água e de latrinas está também a levantar preocupações relativamente a doenças transmissíveis pela água, como a cólera.

Como a maioria das escolas ficou destruída durante o conflito, vêem-se frequentemente crianças a ter aulas na rua à sombra de mangueiras – mas apenas duas horas por dia, porque cada professor tem de dar aulas a vários grupos.

 

O que é que a MSF está a fazer para dar resposta à situação?

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Zara, com 9 anos de idade, é acompanhada por Jade, psicóloga da MSF, enquanto saem de um centro de saúde em Mocímboa da Praia. © Nuria Lopez Torres/MSF

A MSF já tinha desenvolvido um projeto em Mocímboa, mas a equipa foi forçada a sair da região em março de 2020, porque a área estava a ser atacada por grupos armados não estatais. A partir de meados de 2021, e através de clínicas móveis, progressivamente alcançámos de novo algumas zonas do distrito e, em setembro de 2022, à medida que as pessoas começaram a regressar em grandes grupos, a MSF retomou também a presença na vila.

Atualmente, a MSF providencia serviços de saúde primária no centro de saúde transitório de Mocímboa e, através de clínicas móveis, em oito aldeias no distrito. Estes serviços incluem testagem e tratamento para VIH e TB, cuidados de saúde sexual e reprodutiva, consultas pré e pós-natais e um programa de saúde nutricional e mental.

Entre janeiro e junho, a MSF alcançou mais de 100 000 pessoas com atividades de promoção de saúde, realizou 21 600 consultas médicas e providenciou apoio psicológico através de sessões individuais e em grupo a 14 000 pessoas, forneceu tratamento em 7 300 casos de malária e em 4 800 casos de infeções respiratórias, encaminhou 2 000 pacientes para mais cuidados médicos, realizou 1 500 consultas de saúde sexual e reprodutiva e prestou assistência a 600 partos. Na primeira metade de 2023, os principais problemas de saúde que observámos nas nossas clínicas móveis foram malária (33,9%), infeções respiratórias (22,4%) e doenças de pele (16,2%).

A MSF tem também prestado apoio na reabilitação das infraestruturas de saúde, incluindo na reabilitação do Centro Escola de Formação, próximo do principal hospital em Mocímboa, e que está a servir de hospital temporário. A MSF também providenciou apoio na reabilitação do Centro de Saúde de Quelimane, que é suposto cobrir as necessidades de cerca de 16 000 pessoas na área. Para melhorar o acesso a água potável segura, as equipas da MSF distribuíram sabão e kits de solução de cloro a 16 000 famílias, e estão a apoiar a reabilitação de bombas de água.

 

Que mais nos pode dizer sobre Mocímboa?

Mocímboa é um lugar especial devido à beleza natural do território e à força da população. Há imensos coqueiros e mangueiras, praias, rios e lagoas lindíssimas, e uma floresta densa em volta. Quando viajamos de avião, é possível ver o esplendor do oceano Índico, que contrasta com o verde da floresta e o branco das areias, bem como as montanhas de Mueda e de Palma repletas de vida selvagem. Antes do conflito, as pessoas vinham para aqui de férias.

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Imagem aérea da costa entre Pemba e Mocímboa da Praia, a área mais afetada pelo conflito em Cabo Delgado. © Nuria Lopez Torres/MSF

Em Mocímboa, a comunidade conseguiu fazer o que em alguns sítios demoraria anos: com coragem, as pessoas recomeçaram do zero pequenas quintas de cultivo e serviços públicos, da melhor forma que conseguiram, com recursos e apoio muito escassos. Porém, as necessidades continuam a ser substanciais e instamos a um maior apoio para dar resposta àquilo que a comunidade não consegue fazer sozinha.

 

A MSF trabalha em Cabo Delgado desde 2019, garantindo acesso a cuidados de saúde para pessoas deslocadas pelo conflito ou que regressam a casa, através de serviços de base comunitária e clínicas móveis, e providenciando apoio a centros de saúde e hospitais locais. Em 2023, as equipas da MSF têm estado a trabalhar em áreas de difícil acesso nos distritos de Macomia, Meluco, Mocímboa da Praia, Mueda, Muidumbe, Nangade, Namuno e Palma. As atividades desenvolvidas têm incluido serviços de saúde mental, consultas de saúde primária e secundária, promoção de saúde, melhorias em água e saneamento e distribuição de artigos essenciais de socorro.

 

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