Moçambique: “Primeiramente, eles disseram: estamos com fome”

A médica brasileira Ana Leticia Nery fala sobre as dificuldades de oferecer ajuda humanitária na região remota de Nhampoca

Moçambique: “Primeiramente, eles disseram: estamos com fome”

A dra. Ana Leticia Nery, coordenadora-médica de Médicos Sem Fronteiras, foi a Moçambique alguns dias depois da chegada do ciclone Idai. Ela descreve o que viu durante as últimas semanas no distrito de Nhamatanda, particularmente no subdistrito de Nhampoca, uma área rural pobre, onde as equipes móveis de MSF estão prestando assistência.

Os rios do subdistrito de Nhampoca transbordaram e, embora tenha passado mais de um mês desde que o ciclone Idai chegou, a água ainda não baixou em todos os lugares. Quando está tudo bem, muitos dos vilarejos são remotos. Seus habitantes vivem em terras cercadas por rios e ficaram ainda mais isolados desde o ciclone e as inundações. Nhatiquiriqui, por exemplo. Nhatiquiriqui é um vilarejo composto principalmente de pequenas ilhas, onde as pessoas vivem no terreno mais alto. As famílias se refugiaram em volta da escola ou estão dividindo casas de barro com outras famílias. Suas plantações estão inundadas. Os níveis de água subiram tanto que pés de milho ficaram presos em linhas de energia. A agricultura é a única atividade nesta área rural e é essencial para os 1.400 habitantes de Nhatiquiriqui.

É impossível chegar ao vilarejo por estrada. Então, para poder avaliar a situação, a equipe de MSF usou um helicóptero. Quando perguntamos aos habitantes quais eram suas necessidades médicas, primeiramente, eles disseram: “estamos com fome”. E, depois, “queremos cultivar nossas plantações.” Então, eles falaram sobre malária, mosquiteiros e a distância do centro de saúde. A comida está sendo trazida de helicóptero por uma agência governamental e as pessoas estão começando a replantar arroz, milho e feijão sempre que podem. Mas eles perderam todas as suas reservas e vão ter que esperar vários meses pela próxima safra.

Nos vilarejos do subdistrito de Nhampoca, no distrito de Nhamatanda, para onde vamos avaliar a situação, fazemos rastreamento de desnutrição e oferecemos consultas médicas gerais. Também testamos e tratamos a malária. Nós vemos principalmente pessoas com malária, mas também diarreia e infecções respiratórias. Embora ainda não tenhamos identificado altos índices de desnutrição, a situação alimentar é preocupante, porque dependerá da continuidade da distribuição de alimentos.

Por outro lado, a cólera não é mais uma preocupação e tem havido uma queda no número de casos. Na unidade de tratamento de cólera que abrimos em Tica, em um mês tratamos 242 pacientes, enquanto agora temos apenas um ou dois por dia. A campanha de vacinação contra a cólera correu bem – MSF deu apoio logístico ao Ministério da Saúde para implementá-la. Nós fornecemos em especial um helicóptero, que permitiu que as pessoas na pequena cidade de Nhampoca fossem vacinadas.

Isso foi necessário porque Nhampoca está extremamente isolada, ainda mais do que costuma ser durante a estação de chuvas. Alimentos estão sendo trazidos para cá também. No entanto, Nhampoca é diferente dos vilarejos de Nhatiquiriqui e Mapanda, que têm apenas um profissional de saúde, já que o vilarejo, que tem quase 12 mil habitantes, possui um centro de saúde. Mas mesmo que seu enfermeiro continue o trabalho, ele é apenas uma pessoa com um estoque limitado de medicamentos.

É verdade que a reconstrução começou no país. Mas os habitantes do subdistrito de Nhampoca estão particularmente vulneráveis. Em outros lugares, como Tica e Nhamatanda, a reconstrução pode ser vista ao longo das estradas, onde as pessoas que receberam lonas plásticas e toras de madeira montam abrigos. Mas levar ajuda até Nhampoca é um desafio. Antes da chegada da nossa equipe móvel, a agência governamental que distribuía alimentos era a única organização a fornecer assistência na região.

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