Mossul: um lento caminho para a recuperação na cidade das duas primaveras

A ofensiva militar para retomar o controlo da cidade das mãos do grupo auto-denominado Estado Islâmico começou em outubro de 2016 e o “fim” da batalha foi declarado oficialmente a 10 de julho de 2017. Para as pessoas de Mossul a vida recomeçou aos poucos, mas reconstruir a cidade ainda está a levar o seu tempo – e o sistema de saúde não é exceção. Cinco anos passados desde a batalha de Mossul, as pessoas continuam a precisar de apoio. As vozes dos habitantes contam a história dos esforços de uma comunidade inteira para enfrentar desafios diários, uma história feita também de capacidade de superação e de esperança

Trabalhadores da MSF observam a construção de uma nova instalação para o hospital de Al Shifaa, em Mossul, no Iraque.
© Julien Dewarichet/MSF

“Mãe de duas primaveras, é assim que chamamos à cidade”, conta Imad Abdullah, paciente no hospital de Al-Wahda, que é gerido pela Médicos Sem Fronteiras (MSF) e especializado em cirurgias ortopédicas, em Mossul Oriental, na margem esquerda do rio Tigre. “Não há mais nenhum lugar no mundo em que se possa ver esta bela estação acontecer duas vezes”, sublinha ainda.

Em 2016, Mossul, segunda maior cidade do Iraque, foi assolada por uma das mais mortais batalhas urbanas desde a II Guerra Mundial. “Quando penso naquilo por que Mossul passou durante a guerra, é como se o meu filho estivesse nas urgências e eu, e todos os outros habitantes, à espera do lado de fora, preocupado e esperançoso de que ele sobrevivesse”, explica Imad Abdullah.

Cinco anos após o fim oficial da batalha e a retomada da cidade pelas forças iraquianas das mãos do grupo Estado Islâmico, as pessoas voltaram a Mossul e a vida na cidade vai regressando ao normal, apesar dos muitos desafios que os habitantes enfrentam e da destruição que permanece bem visível.

Mossul em abril de 2018.
Mossul em abril de 2018. © Sacha Myers/MSF

 

De uma cidade desvastada pela guerra a uma cidade animada

“Mossul passou por mudanças radicais nos últimos cinco anos”, avança o promotor de saúde da MSF Sahir Dawood. “Da primeira vez que voltei à cidade, logo depois do fim da batalha, parecia uma cidade fantasma. Eu olhava para a direita, para a esquerda, e a única coisa que via eram escombros, edifícios destruídos e ruas vazias, com algumas pessoas exaustas num sítio ou outro. Mas agora, quando ando pela cidade, vejo pessoas a trabalhar e a saírem à rua. Vejo edifícios de pé, as luzes das ruas acesas durante a noite.”

Hoje em dia, as pontes que foram destruídas na cidade durante a guerra já reabriram e Mossul Oriental e Ocidental estão de novo ligadas. Durante os últimos cinco anos, as pessoas que vivem em Mossul viram as ruas transformarem-se, com a remoção gradual de barreiras e postos de controlo – um sinal de melhoria na segurança. Atualmente, pais e mães já não têm medo de deixar os filhos brincar no exterior e de os mandar para a escola. “A vida mudou para nós, da escuridão de volta à luz”, descreve Saad Hamdoon, tio de Hamdoon Jassim, que é paciente no hospital da MSF em Nablus, em Mossul Ocidental. O adolescente aguardava no serviço de urgências com o pé esquerdo engessado, pronto para receber alta hospitalar.

A Cidade Velha em ruínas. Após o conflito em Mossul, apenas algumas pessoas regressaram para reconstruir as suas casas. 14 de setembro de 2021.
A Cidade Velha em ruínas. Após o conflito em Mossul, apenas algumas pessoas regressaram para reconstruir as suas casas. 14 de setembro de 2021. ©Nanna Heitmann

 

“Mossul é lar”

Uma vasta série de atividades surgem em Mossul todos os dias. Há pessoas que se voluntariam para remover escombros na Cidade Velha, reparar casas, limpar as ruas. Influencers e ativistas das redes sociais que são de Mossul lançaram campanhas de angariação de fundos para ajudar as famílias a reconstruirem as suas casas ou a iniciar negócios. Há alguns dias foi partilhada na página de social media de um bairro uma fotografia de uma criança que todas as noites rega as árvores recentemente plantadas na sua rua – essas árvores foram também plantadas por um grupo de voluntários da cidade: este é só um exemplo dos milhares de iniciativas levadas a cabo pelas pessoas em Mossul.

 

Estes esforços merecem reconhecimento e devem ser elogiados porque estas pessoas trabalham incansavelmente sem quererem quaisquer vantagens pessoais”, frisa Hanan Arif, que integra as equipas da MSF no hospital de Al-Wahda. “Porque Mossul é lar, a única coisa que desejam é reconstruir a cidade e ajudar os habitantes a recuperarem as vidas deles.

 

As pessoas estão não só a reconstruir a cidade, estão também a reconstruir as suas vidas. Membro das equipas da MSF desde 2017, Ahmed Abdullah começou a trabalhar com a organização médico-humanitária no hospital de traumatologia em Hamman Al-Alil, dedicado a prestar assistência a pacientes feridos de guerra que para ali eram levados desde Mossul. “Vi pessoas, estrangeiros a trabalhar para organizações humanitárias, que corriam à nossa frente, mas rápidos do que nós, para resgatar os feridos. Nós, as pessoas de Mossul, estávamos a fazer o nosso melhor, mas ainda estávamos muito em estado de choque, por causa do que passámos. Pouco a pouco, com o encorajamento das equipas internacionais, e a forte relação que construímos juntos, ultrapassámos esse choque – começámos a correr também, para resgatar os feridos na nossa cidade. Foi a primeira vez em que estivemos envolvidos em salvar vidas. Sentimo-nos muito realizados.”

Ahmed Abdullah recorda ainda:

 

Antes disso, a única realidade que conhecíamos era a da brutalidade, das mortes e das deslocações maciças. Não estávamos muito familiarizados com o espírito humanitário. Agora, há uma parte grande em mim que mudou por causa do trabalho humanitário. Porque vi humanidade como nunca tinha visto.

 

Ahmed Abdullah, técnico de água e saneamento da MSF desde 2017. ©MSF/Florence Dozol

 

Necessidades ainda superam os esforços de recuperação

Apesar de as pessoas de Mossul sentirem a mudança, a realidade diária que vivem não está ainda desprovida de desafios. Muitas famílias perderam tudo na guerra e ainda enfrentam grandes dificuldades para ganhar o sustento e para encontrar alojamento adequado. Algumas famílias perderam pessoas que eram a única fonte de rendimento no agregado, pelo que recomeçar do nada pode demorar muitos anos. E dado o nível de destruição da cidade, o número de casas disponíveis para alojar famílias diminuiu drasticamente.

Quando os habitantes de Mossul começaram a regressar lentamente à cidade, algumas famílias com baixos rendimentos tiveram de se alojar nas casas entretanto danificadas e outras de arrendar outras habitações, apesar de enfrentarem grandes dificuldades financeiras. Sem oportunidades de emprego, especialmente para os mais jovens, é extremamente difícil para muitas famílias se estabelecerem num local. E a morosa recuperação económica e social da cidade constitui um fardo acrescido para as pessoas.

Mossul teve em tempos o segundo maior sistema de saúde no Iraque, mas a situação atual está ainda bem longe do que era antes da guerra. As instalações médicas foram fortemente danificadas durante a guerra, pelo que as pessoas se debatem com dificuldades para ter acesso a cuidados de saúde de elevada qualidade a preços que lhes sejam comportáveis. A destruição tão pouco poupou as estruturas fora de Mossul, o que resulta em as pessoas terem de fazer frequentemente deslocações muito longas para alcançar as poucas instalações que funcionam na cidade.

“As pacientes chegam-nos de muito longe para terem os partos no nosso hospital”, reporta a supervisora da maternidade da MSF no hospital de Nablus, Sulav Al-Hamza, em Mossul Ocidental. “É suposto conseguirem aceder a esses serviços em qualquer hospital ou estrutura de saúde que lhes esteja próxima, mas não é isso que acontece. Até hoje, há pessoas que perdem a vida nas estradas mesmo precisando de apenas simples procedimentos ou tratamentos, como uma transfusão de sangue ou coisas que não deveria ser difícil providenciar-lhes.”

Jihan Ahmed*, tia e cuidadora de Samad, um recém-nascido de um dia internado no hospital de Nablus e cujo parto foi feito por cesariana, conta que, por ser “mãe de três crianças, é frequente ter de visitar as estruturas de saúde”. “Temos muitas dificuldades para obter cuidados de qualidade a preços acessíveis. É por isso que vimos desde Mossul Oriental até este hospital em Mossul Ocidental”, explica.

Atualmente, os principais hospitais reabriram em instalações temporárias ou em caravanas, o que são soluções apenas de curto prazo. Algumas estruturas encontram-se hoje em dia longe de onde estavam, e que eram mais centrais, o que dificulta o acesso das pessoas de forma tão rápìda quanto antes acontecia.

Uma enfermeira da MSF presta cuidados a um recém-nascido na maternidade do hospital Nablus, gerida pela MSF, em Mossul Ocidental.
Uma enfermeira da MSF presta cuidados a um recém-nascido na maternidade do hospital de Nablus, gerida pela MSF, em Mossul Ocidental. ©MSF/Florence Dozol

 

Há ainda também escassez no fornecimento de provisões e de medicamentos. Por exemplo, agora são bem menos as cirurgias que é possível fazer por dia em comparação com o que sucedia antes da guerra, uma vez que os recursos têm de ser racionados e porque deixou de existir a mesma capacidade de camas e de procedimentos cirúrgicos.

Durante a batalha de Mossul e pouco depois, as equipas da MSF trataram vítimas de guerra no serviço de urgências e no bloco operatório do hospital de Nablus. Estas atividades evoluiram conforme as necessidades médicas foram mudando. “As necessidades continuam claramente a ser maciças hoje em dia”, sublinha a coordenadora-geral da MSF no Iraque, Esther van der Woerdt.

“As três estruturas da MSF que existem na cidade continuam a receber largos números de pacientes que procuram cuidados de maternidade, pediátricos, de emergência ou cirúrgicos”, descreve ainda. Só nos primeiros seis meses de 2022, nasceram 3 853 bebés nos dois hospitais-maternidade da MSF em Mossul e foram feitas 489 cirurgias no hospital de Al-Wahda.

Visita da equipa médica ao quarto de Imad Abdullah. Após um acidente de mota, Imad foi internado no Hospital Al-Wahda, gerido pela MSF em Mossul Oriental.
Visita da equipa médica ao quarto de Imad Abdullah. Após um acidente de moto, Imad foi internado no hospital de Al-Wahda, gerido pela MSF em Mossul Oriental. ©MSF/Florence Dozol

 

Consequências duradouras da guerra

Faris Jassim foi ferido durante a batalha. Sofreu diversas complicações, foi submetido a 25 cirurgias e não recuperou ainda por completo.

 

Passei por momentos muito complicados depois de ter sido ferido. Durante dois anos tive pensamentos suicidas por causa de todas estas cirurgias e tratamentos que me pareciam nunca mais acabar. Mas quando comecei a ver a minha perna a recuperar, senti esperança de novo. É um salto enorme passar de estar preso a uma cadeira-de-rodas para conseguir agora andar sozinho.

 

Faris está prestes a receber alta do hospital Al-Wahda, gerido pela MSF em Mossul Oriental e a primeira coisa que está desejoso de fazer é voltar ao trabalho na sua loja.

Em 2017, a maioria dos pacientes nas estruturas da MSF dentro e nos arredores de Mossul lidavam com transtornos psicológicos depois daquilo pelo qual tinham passado. Apesar de as necessidades de saúde mental terem reduzido, os traumas que as pessoas viveram não foram esquecidos. “Durante a batalha, não tínhamos como sair da cidade”, recorda a tradutora da MSF Rahma, que é de Mossul. “Não tínhamos outra escolha senão testemunhar a violência e a guerra. Aquilo por que passámos teve impacto na nossa saúde mental. Até hoje, oiço o barulho dos rockets e das explosões – mesmo estando apenas na minha cabeça.”

Durante a guerra, as pessoas viviam em medo constante, a pensar que podiam perder a casa, os familiares ou as suas vidas a qualquer momento. Hanan Arif teve de tranquilizar os filhos de que ficariam bem e de mostrar-se forte para toda a família. Devido à violência, acabaram por ter de fugir da casa onde viviam em Mossul Ocidental.

 

Fugimos do nosso bairro a pé e atravessámos para Mossul Oriental. A meio caminho na ponte, parei e olhei para trás, para Mossul Ocidental. O cenário de fumo e de destruição partiu-me o coração. Foi muito doloroso ver Mossul, a nossa mãe amada, daquela forma, a morrer em frente aos nossos olhos.

 

Atualmente, a MSF disponibiliza um espaço seguro para os pacientes contarem as suas histórias e conversarem sobre os traumas que viveram. Através de sessões de cuidados de saúde mental individuais ou em grupo, as pessoas podem abrir-se e desbloquear lentamente mecanismos para enfrentarem esses traumas com a ajuda de profissionais de saúde mental. Procurar por apoio em saúde mental pode ser difícil uma vez que – tal como em muitos outros locais no mundo – o tema continua a ser um tabu para muitas famílias.

Sessão de educação em saúde no pátio do Hospital Al-Wahda, gerido pela MSF em Mossul Oriental. Karam Yassine, promotor de saúde, explica ao paciente Faris as melhores práticas para evitar infeções e complicações após a cirurgia.
Sessão de educação em saúde no pátio do Hospital Al-Wahda, gerido pela MSF em Mossul Oriental. Karam Yassine, promotor de saúde, explica ao paciente Faris as melhores práticas para evitar infeções e complicações após a cirurgia. ©MSF/Florence Dozol

 

As pessoas em Mossul enfrentaram muitas dificuldades, mas nunca lhes falta coragem, paciência e força. “As coisas estão a melhorar pouco a pouco”, avalia Sahir Dawood. “Porque aquilo pelo qual Mossul passou não é simples. Acho que mais nenhuma cidade passou por isto. Não há nenhuma solução mágica para resolver tudo rapidamente”, considera ainda.

Por seu lado, a coordenadora-geral da MSF no Iraque, ressalva que “é muito gratificante ver estes desenvolvimentos positivos na cidade”. “Desejamos que a reconstrução da cidade e dos sistema de saúde acelere conforme avançamos. Porque Mossul ainda tem um longo caminho pela frente para se reerguer e para que a sua população se sinta totalmente recuperada. E isto só pode alcançar-se com apoio. Mossul continuará a precisar de apoio nos próximos anos”, alerta ainda Esther van der Woerdt.

*nome alterado para proteção de identidade

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