Não há lugar seguro para as pessoas deslocadas em Gaza

À medida que as forças israelitas mudam o foco para o Sul de Gaza, os palestinianos enfrentam riscos crescentes para a saúde e intensos bombardeamentos no que deveria ser uma área segura

Gaza - paciente em hospital
© Mohammad Masri, 2023

Dois meses de guerra, dois meses de indiscriminados bombardeamentos israelitas sobre Gaza, que transformaram o Norte da Faixa num monte de destroços. Com a brutalidade a aumentar também nas regiões Centro e Sul, palavras já não chegam para descrever o sofrimento dos palestinianos encurralados em Gaza.

Os incessantes ataques israelitas sobre o Sul, onde estão cercadas praticamente todas as pessoas que viviam no território (cerca de 2.2 milhões), mostram que não há locais seguros em Gaza. Já foram mortas quase 19 000 pessoas e cerca de 50 000 feridas nas últimas dez semanas, conforme dados do Ministério da Saúde. A ofensiva em curso continua a provocar centenas – se não mesmo milhares – de mortes todos os dias.

 

Os desafios de tratar os feridos de guerra em Gaza

Desde que a curta pausa nos combates terminou a 1 de dezembro, têm chegado quase todos os dias de forma maciça mortos e feridos ao Hospital Nasser em Khan Younis, Sul de Gaza, onde a Médicos Sem Fronteiras (MSF) trabalha.

O elevado número de pacientes e a gravidade dos ferimentos estão a empurrar dia após dia o sistema de saúde do Sul de Gaza para o colapso, tal como aconteceu no Norte, onde resta apenas um hospital funcional, segundo a Organização Mundial de Saúde.

Gaza - Cirurgia Hospital Nasser
Procedimento cirúrgico no Hospital Nasser. © Mohammed ABED, Novembro de 2023

“A sala de emergências do Hospital Nasser está totalmente cheia e há pacientes a receber tratamento no chão. Os médicos passam por cima de corpos de crianças, só para tentarem tratar outras crianças que morrerão de qualquer forma”, sublinha o coordenador da equipa médica da MSF em Gaza, Chris Hook. “Há cada vez mais estruturas temporárias a ser montadas, tendas usadas como alas e clínicas. Há edifícios a ser ocupados com mais camas para os pacientes. Precisamentos urgentemente de mais macas.”

 

Os médicos passam por cima de corpos de crianças, só para tentarem tratar outras crianças que morrerão de qualquer forma.”

– Chris Hook, coordenador da equipa médica da MSF em Gaza

 

Prestar cuidados a feridos de guerra é um processo complicado, visto que as explosões e consequentes destroços provocam simultaneamente ferimentos em várias partes do corpo. Em Gaza, o cerco total de Israel torna impossível o acesso a medicamentos essenciais, incluindo analgésicos cruciais durante procedimentos cirúrgicos, e aos equipamentos médicos necessários para tratar os corpos mutilados e queimados das pessoas que chegam vivas.

Os poucos que têm a sorte de sobreviver ficam com lesões que lhes afetarão para sempre a vida. Muitos feridos sofrem queimaduras extremas e fraturas graves que não vão sarar devidamente e que poderão requerer amputações”, explica Hook.

“Muitos desses pacientes, mesmo que possam voltar a ter algo parecido com uma vida normal, terão dores crónicas que exigirão uma gestão e cuidados substânciais. Seria um enorme fardo, mesmo para os sistemas de saúde mais funcionais, mas será muito mais complicado num sistema sob intensa pressão, como em Gaza”.

Uma equipa da MSF tem fornecido cirurgias de emergência e atendimento ambulatório no Hospital Al Aqsa, no Centro de Gaza. De 1 a 11 de dezembro, aproximadamente um em cada três pacientes (640 de 2 058) foi declarado morto à chegada. A 6 de dezembro, o número de pessoas mortas que chegou à instalação superou o número de pessoas feridas. A equipa do hospital esforça-se para manter protocolos de higiene eficazes, de modo a reduzir o risco de infeção para os pacientes, enquanto enfrenta a falta de provisões e de equipamentos essenciais. Esta é uma tarefa crucial, mas extremamente difícil, visto que um número crescente de infeções pode rapidamente transformar-se num desafio médico adicional para os pacientes e trabalhadores de saúde sobrecarregados.

Gaza - Hospital Al Aqsa
Pacientes e pessoas abrigadas no hospital Al Aqsa. 29 de novembro de 2023. © Mohammed ABED

O que está a acontecer atualmente no Sul de Gaza parece ecoar a abordagem violenta seguida pelas forças israelitas no Norte. As pessoas não conseguem aceder a cuidados de saúde e os profissionais não conseguem prestá-los devido a uma política de terra queimada que não deixa qualquer espaço seguro; aos ataques constantes, às repetidas ordens de evacuação pelas forças israelitas a bairros inteiros e ao cerco total imposto à Faixa. A 1 de dezembro, a MSF teve de suspender o apoio a três clínicas de saúde no Sul e reduzir o número de profissionais no Hospital Nasser. É imperativo pôr termo à deslocação contínua de pessoas para permitir que doentes e feridos possam receber os cuidados de que necessitam urgentemente.

 

Sistema de saúde em colapso e infeções em alta

Apesar do risco de ataques violentos contra civis estar sempre presente em Gaza, as infeções resultantes de feridas mal curadas estão a aumentar drasticamente e a colocar vidas em risco.

“O risco de infeção é extremamente alto, devido às condições que as pessoas têm de enfrentar e ao facto de que não existe capacidade para providenciar os cuidados hospitalares a longo prazo de que os pacientes precisam”, sublinha Hook.

No Hospital Europeu, uma pequena equipa médica da MSF começou recentemente a tratar pacientes que foram feridos no início da guerra e cujos ferimentos estão agora infetados por causa da falta de cuidados médicos.

Há muito poucas instalações de cuidados primários a funcionar atualmente no Sul, incluindo a clínica Al Shaboura apoiada pela MSF, o que significa que há pouco ou nenhum tratamento disponível para doenças infecciosas, como a diarreia, varicela, sarna ou infeções respiratórias, que se propagam descontroladamente em ambientes sobrelotados, aumentando os riscos para os palestinianos deslocados.

 

Condições de habitabilidade chocantes e fome generalizada

As necessidades de abrigo também são prementes entre o número crescente de pessoas deslocadas a viver em condições insalubres. “Vêem-se cada vez mais abrigos improvisados pelas ruas de Khan Younis e perto de Rafah. As condições gerais para a maioria das pessoas são terríveis: vivem em estruturas temporárias construídas com pedaços de madeira e lençóis de plástico, sem isolamento da terra ou do chão de betão. As pessoas lutam para encontrar água suficiente para as necessidades de higiene que têm.” Os frágeis abrigos estão também em constante luta com os elementos, devido aos ventos e chuvas fortes.

Com cada vez mais pessoas a chegar ao Sul, os alimentos estão a tornar-se cada vez mais escassos e difíceis de encontrar, o que significa que a pouca comida disponível tornou-se demasiado cara e largamente inacessível.

Durante a pausa de sete dias em novembro, o Hospital Nasser parou brevemente de receber pacientes com ferimentos violentos para passar a ficar sobrecarregado com pacientes com diabetes e outras doenças crónicas, que não conseguiam aceder a cuidados médicos durante os combates. O cenário inverteu-se outra vez, quando retomaram as hostilidades a 1 de dezembro – desta vez, de forma ainda mais intensa. Desconhece-se o paradeiro dos pacientes com doenças crónicas, nem como vão sobreviver, já que as instalações médicas são constantemente assoberbadas por influxos de grandes números de vítimas.

A 17 de dezembro, a maternidade do Hospital Nasser foi atingida. Um paciente foi morto, enquanto outros ficaram feridos. Os ataques às instalações de saúde têm de cessar imediatamente.

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