Nove anos de sobrevivência, nove anos de esperança: a história de Ismail, da Eritreia à Europa

“Tinha preparado o meu cérebro para morrer. E em cada etapa da minha viagem, morrer foi sempre melhor do que ficar onde estava, ou voltar para trás”

Migrantes no Mediterrâneo
Ismail foi resgatado no Mediterrâneo pela MSF em setembro de 2015. © Frederic Seguin/MSF

Antes de ser profissional da Médicos Sem Fronteiras (MSF), Ismail enfrentou uma jornada que bem poderia ter sido fatal. Não teve outra escolha senão deixar o país onde nasceu e, nos meses que se seguiram, passou por detenções arbitrárias, violência e raptos. Cruzou-se com imensas pessoas que não sobreviveram.

Agora, com a MSF, usa as oito línguas que sabe falar para ajudar outros que enfrentaram o mesmo que ele.

 

Ismail trabalha agora como assistente comunitário de saúde com a MSF. © Pierre Fromentin (MSF)/MSF

 

“Em 2015, estudava engenharia na universidade, e um ente querido morreu. Pausei os meus estudos, mas perdi totalmente o foco e a situação na Eritreia estava a piorar cada vez mais.

Na Eritreia, se não somos estudantes ou funcionários do governo, mandam-nos para as forças militares, sem opção de saída. O que se tem passado no meu país tem sido bem documentado pelas Nações Unidas e por outras organizações.

Não tive outra escolha senão partir. Procurar asilo no país vizinho, Sudão, não era boa ideia, pois há lá cerca de dois milhões de eritreios a viver, muitos em campos de refugiados, onde continuam a sofrer. Mas tinha mais uma opção: viajar até à Líbia.

Não há rotas legais do Sudão até à Líbia para uma pessoa na minha situação. Os traficantes de humanos detiveram-me perto da fronteira durante um mês, até conseguir pagar o que eles queriam. Um mês em condições bárbaras. Éramos tantos que tínhamos de dormir na lateral, uns em cima dos outros, num quarto sem janela, como sardinhas numa lata. Davam-nos muito pouca comida, uma táctica para fazer com que pagássemos.”

 

Espancado

“Adoeci. A minha cabeça pulsava com as dores. Não conseguia comer. As pessoas diziam-me que era malária. Diziam-me também que era impossível consultar um médico. Quando nos levaram finalmente para Trípoli, já estava fraco demais para me aguentar de pé. Um guarda aproveitou-se e espancou-me. Não consegui, por isso, subir de volta para o camião e ele ameaçou dar-me um tiro. Mas eu disse-lhe: ‘Estou morto de qualquer maneira, avança à vontade’. Pensei mesmo que ia morrer ali, mas o guarda assustou-se e, felizmente, as pessoas ajudaram-me a entrar dentro do camião.

Depois dessa viagem, fomos detidos outra vez, durante duas semanas, até conseguirmos pagar uma ida para Itália. Chegámos à etapa final do percurso: 12 horas a atravessar um deserto, escondidos dentro de um tanque de água vazio, para que não fôssemos raptados, um risco constante na Líbia.

Não tivemos escolha. Éramos 50 lá dentro. Homens, mulheres e crianças. Deviam estar uns 45 graus lá fora. As pessoas vomitavam e desmaiavam, e as paredes de metal do tanque queimavam-nos ao toque.”

 

Raptado

“Em Tripoli, esperámos duas semanas para que as condições do mar melhorassem. Depois, partimos de madrugada.

Já ouvira histórias de barcos naufragados, pessoas afogadas. Tinha preparado o meu cérebro para morrer. E em cada etapa da minha viagem, morrer foi sempre melhor do que ficar onde estava, ou voltar para trás.

Aproximou-se outro barco. A bordo, homens armados que faziam parte de um grupo de raptores. Ameaçaram-nos e levaram-nos de volta para a Líbia. Disseram-nos que teríamos de pagar 1 500 dólares para sermos libertos. Preferia mesmo morrer, e estava pronto para fazê-lo, a ter de pedir dinheiro outra vez à minha família. Só por causa deles é que consegui chegar até ali. Éramos cerca de 350 e quase 200 pagaram qualquer coisa aos raptores. Os que não o fizeram foram torturados, espancados, baleados ou privados de comida.”

 

Partir da Líbia

“Mas, do nada, libertaram-nos. Em Tripoli, o nosso primeiro contrabandista deixou que entrássemos no barco novamente. Senti um alívio incrível.

Se ficasse mais tempo em Tripoli, não sei se teria sobrevivido. Na altura, o governo estava desfuncional e não havia segurança nas ruas. Conheci pessoas que escaparam do mesmo local onde estávamos, só para mais tarde serem raptadas e torturadas até pagarem outra vez. Não tinha mais para onde ir, ninguém em quem confiar.

Encheram o barco com 650 pessoas. Eu fiquei no porão de carga: o pior lugar. Escuro, sem espaço. As pessoas começaram a desmaiar. Depois das 11h usámos o telefone satélite para pedir socorro. Não sabia bem o que podia acontecer, mas, finalmente, vimos um barco a aproximar-se de nós. Era a MSF.

Transferiram as mulheres grávidas e as crianças primeiro, depois todos os outros. Deram-nos comida, água e cobertores. É difícil explicar por palavras o grande alívio que senti.

Vi muitas pessoas a morrer durante a minha viagem. Foi mesmo a sobrevivência do mais apto.

Quanto entrámos no barco da MSF, havia médicos e enfermeiros, roupas secas, medicamentos e ajuda. Senti-me seguro. Foi no dia 2 de setembro de 2015.”

 

Desistir não foi opção

“Atracámos em Cotrone, no Sul de Itália. Fomos para um centro de refugiados, cercado por guardas e arame farpado com 2,5 metros de altura. Estávamos todos assustados. Não nos deram absolutamente nenhuma informação sobre as regras, leis ou o que aconteceria connosco.

Mais tarde, levaram-nos para um novo acampamento em Bolonha. Perguntaram-nos se queríamos ficar em Itália e dissemos quase todos que não. Conhecíamos pessoas que tinham ficado a viver em Itália e que agora estavam a sofrer. Não tinham apoios nenhuns, estavam a viver na rua e nem sequer conseguiam um emprego, mesmo quando têm direito a trabalhar.

Carregávamos todos os traumas das nossas viagens e das situações que tínhamos enfrentado. Já tínhamos completado 99 por cento do caminho e quase ninguém estava pronto para ficar por ali.”

 

Solidariedade de estranhos

“Foi então que, por acaso, conheci a Vittoria, a Rosa e o Yakob, uma família que ajudava refugiados. Nunca esquecerei a bondade deles. Ajudaram-me a conseguir contactar a minha família e a descansar por alguns dias.

Depois disso, viajei para a Alemanha. Em Munique, podíamos sair e entrar no centro à vontade, mas a forma como os polícias e os agentes de segurança trabalhavam, o racismo que testemunhei, fez-me sentir que tinha de fugir outra vez.

O meu tio vive na Alemanha e ajudou-me a comprar uma passagem para a Bélgica, onde vive a minha tia. Foi a primeira vez que o vi na vida real: partiu da Eritreia nos anos 1970 e não conseguiu voltar nunca mais. Não consigo explicar bem o que senti nesse momento.

Conheci também os meus primos e conversámos a noite toda. Finalmente, consegui contactar a minha mulher na Eritreia. No dia seguinte, viajei para a Bélgica e encontrei-me lá com a minha tia.”

 

Um novo desafio

“Foi-me concedido asilo na Bélgica. Comecei a aprender holandês o mais intensamente possível. Esperava poder prosseguir os meus estudos de engenharia na universidade, mas o meu holandês ainda não estava a um nível técnico. Então, segui o conselho do Centro de Emprego e comecei a formar-me para me tornar eletricista. Também comecei a trabalhar para obter um visto de reagrupamento familiar para a minha mulher.

Foram necessários sete anos e múltiplos pedidos, recusas e apelos para que a minha mulher conseguisse o visto. Durante esse tempo, ela teve de fazer uma viagem muito perigosa para a Etiópia, viver sozinha, com a saúde dela a piorar cada vez mais. Eu estava desesperado e trabalhava a cada hora que conseguia para pagar aos advogados que estavam a trabalhar no nosso caso.

Finalmente, em outubro de 2023, concederam-lhe o visto, e nesse mesmo mês, celebrámos o aniversário dela na Bélgica. Foi um momento belo.”

 

Solidário

“Estou a viver na Bélgica há já oito anos. Agora falo oito línguas e uso-as no meu trabalho como assistente comunitário de saúde da MSF, apoiando refugiados e migrantes para terem acesso a assistência médica.

As pessoas que apoio são principalmente eritreus, como eu. Vejo diariamente pessoas com stress pós-traumático, por causa do que enfrentaram nas viagens que fizeram. No entanto, dizem-nos muitas vezes que tiveram mesmo de correr esse risco, porque a situação que estavam a deixar para trás era ainda pior.

Algumas aguentam até chegarem à Europa, onde as políticas agressivas as deixam isoladas e desesperançadas. A saúde mental delas desmorona-se. Há suicídios todos os anos na nossa comunidade.

É muito mais difícil ter acesso agora aos serviços que me ajudaram em 2015. O projeto da MSF onde trabalho apoia principalmente pessoas que não conseguem ter essa assistência. As pessoas são forçadas a viver em condições precárias, campos e abrigos, e a equipa comunitária a que pertenço tem como objetivo prestar apoio de saúde mental, cuidados médicos e promoção de saúde, assim como conselhos de prevenção e controlo de infeções. Assistimos especificamente pessoas que são mais marginalizadas e excluídas do acesso a cuidados, abrigo e proteção.

É um sentimento especial fazer este trabalho com recém-chegados que passaram por tanta coisa, porque, há uns anos, estava eu no lugar deles.”

 

Um coração humanitário

“Há muitos estereótipos sobre migrantes. Mas conheço milhares de pessoas como eu, que tiveram de deixar um situação extremamente difícil e, desde que cheguei aqui, tenho trabalhado quase sete dias por semana. Ainda hoje, trabalho como estafeta, entregando comida, ao mesmo tempo que trabalho com a MSF, para poder continuar a sustentar a minha família. Os refugiados e migrantes contribuem para a economia e desenvolvimento do país em que vivem. Nós só queremos construir um futuro.

Às vezes, lembro-me de um momento específico, no navio da MSF, depois de sermos resgatados. Falei com um mediador cultural, um homem iraquiano. Perguntei-lhe que qualificações necessitaria se quisesse ter um trabalho como o dele, ajudando as pessoas quando mais precisavam. Disse-me que não era necessário nenhum diploma especial, apenas fortes habilidades de comunicação e um coração humanitário. Depois destes anos todos, aqui estou eu.”

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