O preço humano do Título 42: histórias da fronteira entre os EUA e o México

A política adotada com argumentos de prevenção face à pandemia permite interceptar e expulsar migrantes, que procuram melhores condições de vida nos EUA

© Yesika Ocampo/MSF

Nos últimos dois anos, o Governo dos Estados Unidos tem usado a pandemia de COVID-19 como pretexto para interceptar e expulsar pessoas que procuram obter asilo na fronteira Sul do país, ao abrigo da norma conhecida como Título 42 – uma medida devastadora, que sujeita pessoas já muito vulneráveis a ainda mais perigos e violência.

Esta política, avançada pela Administração Trump em março de 2020 e prorrogada repetidamente pela Administração de Joe Biden, permite barrar e deportar de forma imediata pessoas que procuram proteção na fronteira dos Estados Unidos. Esta medida foi usada já para permitir mais de 1,45 milhão de expulsões para cidades perigosas ao longo da fronteira com o México. Aí, pessoas que procuram segurança são abandonadas e deixadas com um acesso limitado a serviços básicos e abrigos, sob uma constante ameaça de violência e extorsão às mãos de grupos criminosos ou da polícia local.

As equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF) presenciam todos os dias o medo e as ameaças que migrantes e requerentes de asilo enfrentam devido a esta norma. Nestes últimos dois anos, a MSF e múltiplos peritos médicos têm repetido que, de um ponto de vista de saúde pública, não há qualquer justificação legítima para o Título 42. É uma política xenófoba, disfarçada de medida de proteção da saúde pública, que nada mais faz do que colocar apenas pessoas vulneráveis em situações de perigo. Não existem justificações para continuar a abusar desta ordem com a recusa de entrada a requerentes de asilo e privando-os do direito de obter proteção. A Administração Biden tem de acabar com o Titulo 42 de forma imediata.

Duas pessoas, que foram expulsas recentemente dos Estados Unidos ao abrigo do Título 42, dão aqui o seu testemunho. Encontram-se agora em Piedras Negras, na fronteira entre o México e os EUA.

“Por mim não ficaria no México. Isto assim é como estar no meu país” – Amanda Maribel Sánchez, 28, de Copan y Lempira, Honduras.

Amanda viaja sozinha com a filha e o filho, de três e seis anos. Fugiu de um ex-marido violento e teme pela vida, se alguma vez tiver de voltar às Honduras. Relembra uma viagem terrível para Norte, em direção aos Estados Unidos, onde foi assolada por todo o tipo de degradação e violência, incluíndo violação. Encontra-se no México há um ano, a lutar para sobreviver, sem ter acesso a um abrigo seguro ou a bens e serviços básicos. Chegou aos Estados Unidos há algumas semanas, de onde foi logo expulsa, sem ter sequer oportunidade para requerer asilo.

“Há umas semanas, saltámos para o rio. Fomos varridos pela corrente, mas conseguimos atravessar [para os Estados Unidos]. Mais tarde, fomos travados pelos serviços de imigração. No centro de detenção, forçaram-nos a deitar fora tudo o que tínhamos, roupas e tudo. Até me tiraram um terço.

Pedimos-lhes asilo e eu até lhes disse que não podia voltar para Honduras. Perguntei se podia usar o telefone para falar com o consulado, mas não me deixaram. Disseram-me, simplesmente, que não davam asilo a crianças pequenas.

Em Piedras Negras, temos de nos esconder. Não podemos sair à rua, porque a polícia persegue-nos, como se fôssemos animais, e temos de lhes dar dinheiro para não nos prenderem. Nos abrigos, apenas nos oferecem comida, temos de dormir na rua ou em casas abandonadas, mas até aí somos perseguidos pela polícia.

Vivemos numa casa abandonada. Dormimos no chão, sem cobertores. Tem sido mesmo difícil, porque a minha filha está muito magra, o meu filho está sempre sujo, e eu também. [As crianças] não vão à escola, não têm medicamentos, porque nos fecham todas as portas e não nos querem ajudar. Temos muita fome.

Aquilo que mais desejo é chegar lá [aos Estados Unidos] e trabalhar, para que ele [o seu abusador] não me consiga encontrar, e as minhas crianças possam crescer. Por mim não ficaria no México. Isto assim é como estar no meu país.”

“Somos seres humanos necessitados” – Marvin Ulloa, 37, de San Pedro Sula, Honduras.

Marvin viaja com a mulher e a filha de dois anos. Nas Honduras, temia pela vida, depois de um familiar ter sido assassinado, por isso decidiu fugir, em abril de 2021. No México, foi-lhe rejeitado o requerimento de asilo e, em fevereiro passado, atrevessou o rio para chegar aos Estados Unidos, onde esteve brevemente detido. Marvin e a família vivem com medo, numa casa abandonada em Piedras Negras, sob o risco constante de expulsão pelas autoridades locais. Explica que não há abrigos e que os únicos que estão disponíveis são os que não consegue pagar. Descreve os abusos físicos que sofreu no centro de detenção nos EUA e as condições de vida deploráveis em que vive quem é mandado de volta para o México.

“Atravessámos o rio na noite de 13 de fevereiro e a polícia de imigração apanhou-nos. Espancaram-me. Já tinha tentado atravessar noutras alturas e nunca me tinham tratado assim tão mal. Desta vez, deitaram fora tudo o que eu tinha, até coisas importantes. Talvez não importem para eles, mas importam para mim.

Confrontei-os e ficaram irritados. Agarraram-me pelo pescoço, atiraram-me ao chão e algemaram-me. Tinha a cara no chão e ele [um agente de imigração] cravou o pé na minha cabeça. Chegaram mais agentes e agrediram-me. A minha filha tapou os olhos e começou a chorar, mas eles não queriam saber. A minha mulher também estava a chorar e tentou pará-los, mas eles agarraram nela e forçaram-a a sentar-se.

Levaram-nos para uma sala. Perguntei se havia algum advogado que me pudesse ajudar e eles disseram que não. Não me explicaram nada, nem sequer se deram ao trabalho de ver se eu estava bem. Estenderam um tapete no chão e fiquei ali, a suportar o frio e o medo. Não dormi bem, o meu corpo estava todo dorido e tinha a cabeça inchada. Às sete da manhã vieram buscar-nos, para nos deixar aqui, na fronteira.

Não havia agentes mulheres para revistar as mulheres. Estavam lá apenas homens para verificá-las e tocá-las. Tocaram-lhes no peito. Estavam a fazê-lo a uma mulher, estavam a tocar nela.

Estou preocupado com a minha saúde, tenho receio de perder a memória. Ontem vi alguém que conhecia, mas não o reconheci. Toda esta zona [a cabeça] dói-me. Por isso é que procuro a ajuda da MSF, para que me possam dar medicamentos. Ainda sofro imenso com a sova que me deram no centro de detenção, em Eagle Pass [noTexas]. Há lá câmaras e acho que tudo aquilo que me fizeram foi gravado.

Ontem, os inspetores, os serviços de imigração e a polícia foram à casa abandonada. Não querem que estejamos lá, mas nós já estamos na rua e, mesmo assim, querem expulsar-nos. A minha mulher vai com a nossa filha pedir esmola, mas eles acham que somos sorrateiros. Não somos ladrões. Somos seres humanos necessitados.

Eu quero chorar, mas fingo que sou forte. Como homem, conseguiria lidar com isto, mas com uma família, não quero vê-los sofrer, a enfrentar a fome e o frio.

Gostaria de chegar aos Estados Unidos. Quero ir para outro sítio, para outro país, onde alguém nos possa ajudar. Aqui não há ajuda.”

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