“O que eu mais quero é conseguir esquecer”: a história de uma migrante em busca de segurança nos Estados Unidos

As equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF) no México ouvem cada vez mais testemunhos de violência enfrentada por migrantes durante o caminho que percorrem em busca de segurança

A história de uma migrante em busca de segurança nos Estados Unidos
©️ MSF

Camila é uma mulher nicaraguense que carrega, tanto no corpo, como na mente, as atrocidades enfrentadas no Nordeste do México por imensas pessoas que viajam em busca de segurança e estabilidade económica nos Estados Unidos da América.

Infelizmente, histórias de violência como a de Camila são ouvidas com cada vez mais frequência pelas nossas equipas em Reynosa e Matamoros, onde, no último trimestre de 2023, registámos um aumento de 70 por cento nas consultas por violência sexual, em comparação com os três meses anteriores.

No ano de 2023, em Piedras Negras, outra localidade mexicana onde trabalhamos, prestámos apoio a 95 sobreviventes de violência sexual e a 177 outras pessoas que sofreram vários tipos de violência, incluindo raptos, agressões físicas, intimidação e desaparecimento forçado de familiares.

Mas foi em Matamoros que encontrámos Camila, que nos contou tudo aquilo que enfrentou:

 

Vejo sangue nas minhas mãos, porque ajudei pessoas feridas na estrada, onde também morreram muitas crianças; vejo-as a correr e não consigo ajudá-las.”

 

“Chamo-me Camila*. Foi a 31 de agosto que decidi seguir em frente com esta viagem. Estava na Nicarágua com a minha família, mas a perseguição, as ameaças e a intimidação contra o meu filho levaram-nos a tomar esta penosa decisão. Patrulhavam a nossa casa, constantemente à procura dele. Eventualmente, a situação ficou insustentável ao ponto de termos de fugir em busca de um futuro melhor.

Começaram-nos a pedir dinheiro logo na Nicarágua. No autocarro, exigiram logo que pagássemos 800 a 1 000 pesos [cerca de 45 a 55 euros], e eu disse-lhes: ‘mas eu estou a viajar legalmente!’, ao que eles retorquiram ‘eles vão intercetar-vos, porque não está a passar ninguém’.

Ao chegar a San Luis Potosi, o autocarro estava cheio e obrigaram-nos todos a sair. Éramos cerca de 150 pessoas e só seguiu viagem uma família mexicana. Forçaram-nos a entrar noutro autocarro, que nos levou de volta para a Guatemala. Aí, sem descansar, decidimos continuar para Norte, em direção ao nosso destino.

Consegui chegar a Monterrey e comprar um bilhete de autocarro para Reynosa, juntamente com outras pessoas. Durante a viagem, fomos raptados e o terror começou. Levaram-nos para uma casa, onde separaram os homens das mulheres. Não havia espaço e tínhamos de passar o tempo todo levantados. À noite, vinham homens que levavam apenas as mulheres para outro sítio. Violaram-nos continuamente, dia após dia, sem qualquer misericórdia.

 

À noite, vinham homens que levavam apenas as mulheres para outro sítio. Violaram-nos continuamente, dia após dia, sem qualquer misericórdia.”

 

Depois, fizeram-nos entrar numa carrinha e levaram-nos para um armazém com ainda mais pessoas. Não tinha dinheiro, telemóvel, nada. Disseram-me: ‘vais morrer aqui, porque não tens nada, não tens ninguém a quem ligar’, porque não tinha sequer um número de telefone. Não tinha ninguém para pedir ajuda. Passei 17 dias assim.

A minha saúde mental foi gravemente afetada e há imagens traumáticas que ainda hoje me atormetam. Vejo sangue nas minhas mãos, porque ajudei pessoas feridas na estrada, onde também morreram muitas crianças; vejo-as a correr e não consigo ajudá-las. Se vir alguma coisa vermelha, lembro-me das vezes em que fui violada e sangrava muito.

Vim até à MSF, porque me estava a sentir mesmo muito mal. Não conseguia reconciliar momentos de tranquilidade [com tudo o que tinha acabado de enfrentar]. Tenho momentos de crise, por exemplo, quando estou a beber café e não consigo conter as lágrimas das memórias do que me aconteceu.

Os psicólogos ajudaram-me imenso. Estou a receber tratamento e sei que ainda tenho um longo caminho pela frente, antes de poder ser quem eu era.

Fico mesmo preocupada quando a mulher que dorme ao meu lado me diz: ‘estavas a dormir e estavas a chorar’ – e quando me olho ao espelho enquanto choro não sinto absolutamente nada. Já cheguei a cair da cama: estava a sonhar que fugia de algo e que saltava, mas acabei por cair da minha cama.

 

O que eu mais quero é conseguir esquecer.”

 

Espero que possa esquecer tudo o que enfrentei, num dia não muito distante. Espero que outras pessoas não passem pelo que eu passei. Somos seres humanos, temos sentimentos. Já tentei gerir de todas as maneiras possíveis o que me aconteceu, mas continua na minha cabeça e não consigo evitá-lo.

Eu não era assim, conseguia lidar com os meus problemas, mas agora é muito difícil. Sempre fui a mãe e o pai dos meus filhos. Criei-os sozinha durante 23 anos.

O que eu mais quero é conseguir esquecer.”

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