Os conflitos mais graves com menos atenção humanitária

Os conflitos e outras situações de violência são cada vez mais graves e complexos, o que impõe desafios a organizações como a nossa para chegar às vítimas. Além disso, em 2017, vimos como muitas crises se agravaram devido a um claro abandono de responsabilidade dos Estados e um vazio de atores humanitários.

O Direito Internacional Humanitário nas zonas de conflito e o Direito de Asilo nos lugares de chegada são os dois princípios fundamentais, acordados depois da Segunda Guerra Mundial, que regem o trabalho humanitário e a proteção de civis. Ambos estão sendo profundamente erodidos e ignorados e entre os responsáveis por esse naufrágio moral de consequências letais estão os arquitetos originais dessas normas, incluindo os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU.

IÊMEN

O Iêmen é um claro exemplo do que falamos: uma crise complexa a qual não se dá uma resposta adequada, com diversos atores se enfrentando e com a intervenção de grandes potências estrangeiras. As dificuldades para ter acesso à população são cada vez maiores e o sistema de saúde colapsou por completo. Essa situação provocou a propagação de doenças como a cólera, com quase 1 milhão de pessoas afetadas, e a difteria, que já estava erradicada há 25 anos no país. Hoje, mais da metade das instalações médicas que existiam antes da guerra permanecem fechadas, muitas delas por terem sido alvo de ataques. E como se não bastasse, o bloqueio internacional dos portos e aeroportos liderado pela Arábia Saudita dificultou enormemente a entrada de suprimentos, material médico e trabalhadores humanitários.

O Iêmen foi uma das emergências de nível 3, o máximo decretado pelas Nações Unidas, com que começamos 2017, assim como Síria e Iraque. Lamentavelmente, no fim do ano contávamos com mais duas: o agravamento da situação nas regiões de Kivu do Norte e Kivu do Sul, na República Democrática do Congo, e a emergência dos refugiados rohingyas em Bangladesh.

BANGLADESH

Em apenas quatro meses, mais de 647 mil pessoas da minoria muçulmana rohingya fugiram de uma violência brutal em Mianmar para refugiarem-se em Bangladesh. MSF documentou recentemente por meio de pesquisas retrospectivas de mortalidade a crueldade e a barbárie que sofreram todas essas pessoas: ao menos 6.700 foram assassinadas em Mianmar durante o primeiro mês de êxodo. Delas, 70% foram executadas a sangue frio, a maioria com um tiro na cabeça. Muitas mulheres morreram ou foram executadas depois de sofrerem estupros terríveis diante de seus vizinhos, familiares e amigos. Centenas ou mesmo milhares de vítimas eram menores de 5 anos.

SÍRIA

A Síria segue sendo o país que gerou mais refugiados nos últimos anos, com cerca de 5,5 milhões, seguida por Afeganistão e Sudão do Sul, que hoje já compartilham o mesmo patamar desse pódio infame, com 2,5 milhões de pessoas refugiadas em outros países; a metade deles em Uganda, o país do mundo que mais acolhe refugiados desde julho de 2016.

A todas essas crises poderíamos acrescentar outras de caráter crônico ou de larga duração como a da República Centro-Africana, da Etiópia, da região do lago Chade e da Somália, todas elas cenários de violência extrema que exigem uma resposta de emergência que atenda às necessidades vitais da população.

Acordos políticos sem humanidade

No ano passado também fomos testemunhas de como Estados Unidos, Austrália e a União Europeia (UE) demonstram um empenho cada vez maior em aumentar as medidas repressivas e as barreiras, tanto físicas – muros e cercas – como políticas contra migrantes e refugiados.

Entre as políticas estão acordos como o da UE com a Turquia, ou o alcançado com a Líbia, que foram apresentados à sociedade como uma solução global, mas que têm como único feito violar o espírito do direito que protege as pessoas que fogem das guerras, de situações de violência, de perseguições políticas ou, simplesmente, da fome ou da pobreza extrema. Estamos presenciando uma externalização de fronteiras, mediante financiamento e assistência técnica às forças policiais dos países de origem ou de trânsito, cujo único objetivo é evitar as chegadas de migrantes e refugiados a qualquer preço. Isso acontece mesmo com o conhecimento geral de que em muitos desses países, como denunciamos durante todo o ano de 2017 no caso da Líbia, os direitos fundamentais dessas pessoas são violados sistematicamente.

Expressar indignação por crimes cometidos contra os migrantes na Líbia, como fizeram Mariano Rajoy, Angela Merkel e Emmanuel Macron [respectivamente chefes de governo de Espanha, Alemanha e França], enquanto prosseguem com políticas de devolução é, no mínimo, vergonhoso. Mediante o apoio econômico e técnico à guarda costeira líbia na devolução de migrantes e refugiados, a UE – encabeçada por Itália, Espanha, França e Alemanha – se converteu em cúmplice dos sequestros e torturas que esses mesmos países agora condenam.

Temos consciência de que nosso balanço não pode ser qualificado como muito otimista, mas em Médicos Sem Fronteiras não nos manteremos calados enquanto observarmos a impunidade com a qual se deprecia e se pisoteia o Direito Internacional Humanitário e enquanto observamos a indecente competição em que embarcaram nossos políticos para ver quem entre eles bate o recorde mundial de hipocrisia em matéria de refugiados.

Artigo publicado originalmente na Europa Press