Países de renda média se desdobram para superar barreiras de preço impostas pelas patentes

Relatório de MSF mostra que preço de medicamentos baseados em tenofovir é menor ou quase igual o AZT em países que têm acesso a versões genéricas

Diversos países de renda média estão intensificando medidas para superar as barreiras de preços impostas pelas patentes de medicamentos, segundo o relatório UNTANGLING THE WEB OF ANTIRETROVIRAL PRICE REDUCTIONS (Desembaraçando o nó da redução dos preços do antirretroviral). A pesquisa, que já está em sua 15ª edição, foi lançada esta semana pela organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF).

Em março, a Índia emitiu pela primeira vez uma licença compulsória para flexibilizar a patente do medicamento tosilato de sorafenibe, utilizado no combate ao câncer e produzido pela Bayer. A medida estabeleceu um precedente importante para o acesso a medicamentos antirretrovirais (ARVs) que são hoje caros demais. A China também acaba de estabelecer um mecanismo próprio para superar a barreira de patentes.

“Nosso relatório mostra que os novos medicamentos contra o HIV estão sendo patenteados na Índia, a farmácia do mundo em desenvolvimento, e isso acaba impedindo a produção de versões genéricas mais baratas de medicamentos dos quais precisamos para tratar nossos pacientes”, disse Nathan Ford, diretor médico da Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais (CAME) de MSF. “A balança de poder vai se inverter na medida em que os países em desenvolvimento se valerem de seu direito de flexibilizar as patentes estabelecidas por produtores que detém o monopólio de um medicamento e estabelecem preços inacessíveis. Por este motivo, damos nosso total apoio a países como a Índia, que estão usando suas novas leis de patentes para lidar com os monopólios abusivos. Se os preços altos impedem o acesso a medicamentos essenciais, o governo indiano atua.”

Os ARVs mais novos são inacessíveis: a combinação de três medicamentos – raltegravir, etravirina e darunavir, cujos efeitos são ampliados com o ritonavir – utilizada em pacientes que não responderam ao regime de tratamento de segunda linha, custam US$ 2.486 por pessoa por ano em países menos desenvolvidos e na África Subsaariana, quase 15 vezes o preço dos medicamentos de primeira linha. Os países de renda média pagam muito mais: nos programas de tratamento de HIV e TB de MSF na Índia, apenas o raltegravir custa US$ 2.147 por ano; em El Salvador, apenas o etravirina custa US$ 6.917; e na Geórgia, só o darunavir custa US$ 8.468.

Além disso, nos dois últimos anos, países de renda média e de renda média-baixa não se beneficiaram dos programas de descontos padronizados oferecidos pelas empresas farmacêuticas, e são obrigados a negociar os preços individualmente, o que acaba levando a um aumento de preços. O relatório de MSF mostra que, nos últimos cinco anos, a combinação de três medicamentos – TDF, FTC e EFV, produzidos, respectivamente, pela Merck, pela BMS e pela Gilead e administrada em apenas uma pílula (o que é altamente benéfico para os pacientes) – custa US$ 1.033 em países de renda média-baixa, seis vezes mais cara que a versão genérica. E os preços são ainda maiores em países que não se beneficiaram dos descontos.

Cada vez mais, países de renda média ou média-baixa também estão sendo deixados de lado na questão de acesso a medicamentos produzidos por meio de acordos de licença voluntária realizados entre companhias farmacêuticas multinacionais e produtores de genéricos; acordos estes cujos termos ainda são mantidos em sigilo. O relatório revelou ainda que não existe nenhum acordo de licença voluntária que beneficie todos os países em desenvolvimento.

“As companhias multinacionais estão tentando passar a impressão de que, com os acordos de licença voluntária, todos os problemas de acesso a medicamentos de HIV serão resolvidos. Mas nosso relatório mostra que alguns países estão sendo deixados de lado deliberadamente, e que existem ainda outros termos que restringem a concorrência”, disse Michelle Childs, diretora de políticas de acesso a medicamentos da CAME.

Os preços de muitos dos novos medicamentos antirretrovirais já são altos porque foram patenteados na Índia, o que impediu a produção de versões genéricas a custos mais baixos. Até 2005, o país não concedia patentes de medicamentos, o que possibilitava a concorrência entre produtores de genéricos. Isso levou os preços da primeira geração de ARVs a cair 99%, passando de mais de US$ 10 mil por paciente/ano em 2000 para os atuais cerca de US$ 120. Em 2005, quando o país teve que começar a conceder patentes, segundo as regras da Organização Mundial da Saúde (OMS), o governo elaborou uma lei que é bem restrita em relação ao que pode ser patenteado. A legislação também permite que qualquer interessado conteste uma patente, antes ou depois de ela ser concedida. Essas oposições de patentes já fizeram com que diversos pedidos de patente de medicamentos ARVs fossem negados na Índia, como no caso dos medicamentos tenofovir e lopinavir/ritonavir.

Por outro lado, a lei da África do Sul é especialmente flexível quanto à concessão de patentes. Somente no ano de 2008, 2.442 patentes foram concedidas a empresas farmacêuticas; no Brasil, em cinco anos (entre 2003 e 2008), foram apenas 278 concessões de patentes farmacêuticas para uso humano.

“Como um número cada vez maior de pessoas precisa de novos medicamentos cujos preços estão fora de seu alcance, os países devem analisar as suas leis com maior rigor, para garantir que os monopólios não sejam concedidos sem nenhum critério, o que sempre tem consequências terríveis para os pacientes”, conclui Childs. “As regras do jogo mudam a partir do momento em que os países estão estabelecendo e colocando em prática mecanismos flexíveis de concessão de patentes.”

Atualmente, MSF oferece tratamento contra HIV para 220 mil pessoas em 23 países.

Destaques da 15ª edição do relatório UNTANGLING THE WEB OF ANTIRETROVIRAL PRICE REDUCTIONS:

• O preço dos regimes de medicamentos baseados em tenofovir é menor que (quando combinado com o efavirenz) ou quase igual (quando combinado com a nevirapina) aos regimes AZT em países que têm acesso a versões genéricas, uma vez que as patentes não são uma barreira ou que as licenças voluntárias permitem a produção de versões genéricas.

• A dose fixa combinada de TDF/FTC/EFV – que auxilia a adesão do paciente ao tratamento por se tratar de apenas uma pílula por dia – continua custando US$ 613 e US$ 1.033 por pessoa por ano em países de renda baixa e renda média-baixa, respectivamente, nos últimos cinco anos. Em países de renda média, os preços podem ser ainda maiores, visto que muitas companhias eliminaram seus programas de descontos padronizados e iniciaram negociações individuais com os governos.

• O preço do pacote com duas unidades de TDF/3TC/EFV, que devem ser tomadas apenas uma vez por dia, caiu em 20% desde o ano passado, para US$ 113 por pessoa por ano. Dessa forma, ele se tornou a opção mais acessível de regimes de primeira linha recomendada pela OMS, com o benefício extra de ser administrada por meio de apenas uma dose diária.

• O regime de tratamento de segunda linha mais acessível atualmente (AZT/3TC + ATV/r) custa US$ 399 por pacientes por ano, enquanto o preço da combinação mais acessível no ano passado era de US$ 442. No entanto, esse valor ainda é três vezes maior do que o preço do regime mais acessível de primeira linha. Para países em que as versões genéricas não podem ser usadas – devido a barreiras de patentes ou porque eles ficaram de fora da zona geográfica beneficiada pelas licenças voluntárias – o preço é ainda bem maior.

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