“Para as pessoas abrigadas no metro de Kharkiv, a primavera chegará mais tarde este ano.”

O médico Morten Rostrup, oriundo da Noruega, está a trabalhar com a Médicos Sem Fronteiras em Kharkiv, na Ucrânia, prestando atendimento médico nas estações de metro onde as pessoas estão abrigadas. Este é o relato pessoal daquilo que viu e ouviu

© Adrienne Surprenant/MYOP

Crianças que têm demasiado medo para adormecer, pessoas que se sentem sem fôlego, pacientes com tensão arterial altíssima prestes a terem um enfarte. É assim a situação numa estação de metro em Kharkiv, no Nordeste da Ucrânia.

“Ela estava sentada num banco à minha frente, numa das estações de metro de Kharkiv. Desde que a guerra começou, as estações subterrâneas servem de abrigo para milhares pessoas, que dormem nas plataformas ou dentro das carruagens dos comboios. Esta mulher tinha sido projetada da sua cama, depois de um míssil ter atingido o prédio onde vivia. Viu a tia morrer a uns escassos metros dela. Não conseguia falar sobre isso sem verter uma torrente de lágrimas, sentada com um olhar cabisbaixo. Tremia. Não era a única à procura de cuidados médicos naquela noite. Havia muitos mais.

Uma rapariga com sete anos, que tinha pesadelos constantes e dificuldades para adormecer. Pessoas que sentem dores físicas que não conseguem explicar. Pessoas que se sentiam sem fôlego. Uma mulher com tensão arterial altíssima, prestes a ter um enfarte. Um senhor idoso que mostrou fotos dos seus três netos – uma das crianças morreu devido a um bombardeamento aéreo  que acontecera dois dias antes e as outras duas estavam no hospital, uma delas gravemente ferida. O pai também tinha morrido. Este senhor idoso sofrera um enfarte e tinha tensão arterial alta. Não conseguia dormir.

Ao longo destas últimas semanas, já tive muitos encontros comoventes com pessoas. A nossa equipa da Médicos Sem Fronteiras (MSF) viaja de estação em estação. Durante as noites, vamos prestando dezenas de consultas médicas antes de estendermos os nossos sacos-cama no sítio onde nos encontramos para passar lá a noite.

Já vi o desespero, a falta de esperança, a confusão, a incapacidade de compreender como acabaram nesta situação – perdendo amigos e membros da família, as casas, o futuro que imaginaram para eles próprios. Já vi o medo incessante que é sentido por muitos, e como algumas pessoas esmorecem aterrorizadas quando o som dos bombardeamentos toma conta do ar.

Antes de viajar para Kharkiv, passei uns dias na cidade de Vinnitsia, que está longe da linha da frente. Queríamos entrar em contacto com psicólogos ucranianos que pudessem assistir as pessoas deslocadas – muitas são vítimas de traumas psicológicos – que estavam de passagem pela cidade, a caminho de outros países onde fosse possível encontrar segurança.

Foi aí onde conheci Olena, uma psicóloga da Ucrânia. Durante a nossa conversa os seus olhos pareciam-me vazios. Tinha familiares na cidade cercada de Mariupol e recebera muito poucas notícias deles. Olena disse que não conseguia trabalhar agora. Antes da guerra, trabalhava como psicóloga clínica e tratava pacientes com problemas pessoais. ‘Os pacientes deixaram de vir’, contou. ‘Os problemas que tinham antes disto parecem tão pequenos agora.’ Olhou para mim e disse: ‘É bom conhecer-te. És tão calmo. Não tens o stress e preocupações que nós temos. O facto de estares aqui tem um efeito calmante sobre nós.’

Já trabalhei em muitas zonas de guerra e crises, mas nunca ouvi de forma tão explícita que a nossa presença tem um impacto assim tão significativo nas pessoas. O trabalho médico humanitário não é apenas o apoio concreto que prestamos na forma de tratamento e medicamentos, mas é também a presença de pessoas de outros países que se unem às pessoas que vivem estas crises em primeira mão. A nossa presença pode trazer esperança, paz e uma sensação de segurança. É um símbolo concreto de que nos importamos. De forma próxima e direta, estamos lá como seres humanos. Estas pessoas não são esquecidas.

A situação em Kharkiv é muito desafiante. Ainda ocorrem bombardeamentos diários. Partes da cidade foram arrasadas até ao chão. Metade da população de 1.5 milhões fugiu. Alguns decidiram ficar ou simplesmente não conseguiram escapar – porque não tinham dinheiro, familiares e outro tipo de contactos ou porque já eram idosos ou estavam demasiado doentes para viajar. Algumas das pessoas que conhecemos disseram que preferiam morrer na sua cidade. Assumimos também que muitas das mais vulneráveis não partiram. Muitas pessoas perderam as casas, especialmente na parte leste da cidade.

Não sei quantos pulmões escutei, quantas gargantas observei e quantos estômagos já senti. Não necessariamente porque suspeitava que houvesse algum problema, mas porque sabia que uma conversa e um exame minucioso atuam como tranquilizantes para os pacientes. Os seus níveis de stresse são tão elevados que um só sintoma pode provocar uma significativa dose de ansiedade para alguns deles. Quando lhes garantia que nada de errado se passava com eles, agradeciam-me. Via-se-lhes o alívio nos olhos. O medo de ficar doente nestas circunstâncias assombra muitos, particularmente os pacientes com doenças crónicas.

É fácil esquecer estas vítimas da guerra: as pessoas com problemas mentais crescentes e aqueles que vivem com doenças crónicas. Quando uma guerra deflagra e não recebem acompanhamento médico, estas doenças podem ter consequências potencialmente devastadoras. Há pacientes que têm doenças cardiovasculares ou pulmonares, epilepsia, diabetes, cancro. Alguns morrem nos mais variados contextos de guerra, talvez até mais do que aqueles que morrem de ferimentos causados diretamente pela violência. Outros são forçados a fugir para um sítio onde possam obter os cuidados médicos que necessitam, preferivelmente noutro país.

Ainda assim, é encorajador ver como as pessoas se estão a ajudar umas às outras. Em cada estação de metro desenvolveram-se pequenas comunidades. As pessoas abrigadas estão familiarizadas umas com as outras. Grupos de voluntários trabalham para fornecer comida e água para todos. Um estudante de medicina preparou uma pequena farmácia e clínica ambulatória numa das estações. As sanitas estão limpas. Todos em Kharkiv contribuem à sua maneira. Também são feitas muitas contribuições vindas de outros países. Vê-se um grande sentimento de unidade, mas seis semanas é muito tempo, especialmente quando não se avistam soluções no futuro próximo.

Ainda está frio nas estações de metro. Parece que a primavera chegará mais tarde a Kharkiv este ano.”

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