Por detrás do progresso, persistem imensos desafios na luta contra o VIH/sida

Em 20 anos, o apoio prestado pela MSF contribuiu para que cerca de 19 000 pessoas recebessem sem custos tratamento com antirretrovirais na capital do país, Kinshasa

Por detrás do progresso, persistem imensos desafios na luta contra o VIH/sida . Em 20 anos, o apoio prestado pela MSF contribuiu para que cerca de 19 000 pessoas recebessem sem custos tratamento com antirretrovirais na capital do país, Kinshasa
© Michel Lunanga/MSF

As equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF) estabeleceram em 2002 o primeiro centro de tratamento ambulatório para fornecer cuidados médicos sem custos a pessoas com o vírus da imunodeficiência humana (VIH) em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo (RDC). Vinte anos depois, apesar de todos os progressos alcançados, as desigualdades no acesso a testes e a tratamentos persistem e continuam a causar milhares de mortes preveníveis todos os anos.

Quando as portas do centro de tratamento da MSF se abriram em maio de 2002, a situação era grave: mais de um milhão de homens, mulheres e crianças viviam com VIH na República Democrática do Congo, mas os tratamentos com antirretrovirais eram escassos e inacessíveis no país. Assim, no início da década de 2000, o vírus matava entre 50 000 a 200 000 pessoas por ano na RDC, de acordo com os dados da UNAIDS (programa das Nações Unidas cuja função é prestar apoio a países no combate à sida).

“Para muitas pessoas, estar infetado com VIH significava uma sentença de morte”, sublinha a coordenadora médica da MSF na RDC, Maria Mashako. “O custo dos tratamentos com antirretrovirais tornava-os inacessíveis para a maioria dos pacientes. Até mesmo a MSF não tinha antirretrovirais nos primeiros meses de existência do centro. A nossa equipa só podia prestar assistência a pessoas com sintomas ou infeções oportunistas. Era mesmo muito difícil.”

Clarisse Mawika, agora com 60 anos de idade, testou positivo em 1999. Lembra-se vividamente desses anos sombrios.

“Não gosto de pensar nessa altura”, frisa. “Quando vi o resultado das minhas análises, pensei ‘é melhor preparar o funeral’. Felizmente, a minha família contribuiu com o que podia e conseguiu pagar-me medicamentos da Europa. Mas depois o dinheiro acabou-se. Tive de interromper o tratamento por vários meses. O meu estado começou a piorar. Foi quando uma pessoa que conhecia me falou da MSF.”

A MSF e o progresso contra o VIH/sida

Por ser a primeira instalação de saúde a fornecer medicamentos antirretrovirais sem custos a pacientes em Kinshasa, o centro da MSF ficou rapidamente sobrelotado, devido ao elevado número de pessoas que necessitava de tratamento.

“Era simplesmente insustentável”, lembra Maria Mashako, ainda uma jovem médica naquela altura. “As consultas começavam ao amanhecer e só acabavam à noite. Havia tantos pacientes…”

Para facilitar o acesso a cuidados médicos e a tratamento, a Médicos Sem Fronteiras começou a prestar apoio noutros centros de saúde e hospitais, fornecendo testes de rastreio e também assistência às atividades médicas. Só em Kinshasa, cerca de 30 instalações de saúde receberam este apoio da MSF nas últimas duas décadas.

As equipas da organização médico-humanitária desenvolveram igualmente um modelo de cuidados experimental, que dava também a profissionais de enfermagem a possibilidade de prescreverem tratamentos e acompanhar pacientes com VIH – uma iniciativa que provou ser crucial, já que apenas um grupo restrito de médicos por província tinha permissão para fazê-lo.

Mais concretamente, em 20 anos, o apoio prestado pela MSF contribuiu para que cerca de 19 000 pessoas recebessem sem custos tratamento com antirretrovirais em Kinshasa. Foram também providenciadas formações a numerosos profissionais de saúde.

“Claro que a assistência médica era essencial, mas não era suficiente”, expressa Maria Mashako. “Tivemos de limitar a afluência às instalações de saúde e, por isso, levámos o tratamento para mais perto dos pacientes. Trabalhámos com associações nacionais de redes de pacientes para criar postos de distribuição de antirretrovirais, geridos diretamente pelos pacientes.”

Clarisse Mawika foi uma das grandes impulsionadoras destes postos de distribuição comunitários, chamados “PODI” na República Democrática do Congo.

“Quando estabelecemos os dois primeiros postos em Kinshasa no ano de 2010, havia menos de 20 pacientes a obter tratamento a partir deles”, avança. “Hoje há mais de dez PODI em oito províncias, e mais de 10 000 pacientes recorrem a estes postos para obter medicamentos.”

Esta abordagem provou ser tão eficaz que foi eventualmente integrada no plano nacional contra o VIH/sida.

Um reflexo das grandes desigualdades

Têm-se assinalado grandes progressos ao longo dos anos contra o VIH/sida na República Democrática do Congo, e a situação atual é incomparável à que se verificava em 2002: os tratamentos tornaram-se mais acessíveis e, ao longo da última década, o número de novas infeções diminuiu para metade.

No entanto, o trabalho da MSF no país foi sempre realizado com um pano de fundo de insuficiência de recursos nacionais e internacionais para enfrentar o VIH/sida e, também, para garantir tratamento e cuidados para todos.

“Quando estabelecemos uma unidade de internamento dedicada à prestação de cuidados ao VIH avançado [sida] em 2008, não previmos que ainda estaria cheia de pacientes uma década depois”, nota a coordenadora médica da MSF na RDC. “Ao longo dos anos fomos duplicando o número de camas, mas ainda temos de montar tendas regularmente para acomodar todos os pacientes. Isto reflete os imensos desafios que persistem na luta contra o VIH/sida na República Democrática do Congo.”

Desde que aquela unidade da Médicos Sem Fronteiras foi aberta em Kinshasa, mais de 21 000 pessoas foram ali internadas para receber cuidados para o VIH avançado.

“Em 2021, a UNAIDS estimou que um quinto das 540 000 pessoas a viver com VIH na RDC não tinha acesso a tratamento, e que 14 000 pessoas tinham morrido de VIH no país”, destaca ainda Maria Mashako. “Como médica, fico revoltada por ver tantas vidas desperdiçadas.”

Aumentar a resposta é urgente e crucial

A República Democrática do Congo depende exclusivamente de doadores internacionais para enfrentar o VIH/sida. No entanto, este apoio é insuficiente, dada a escala dos desafios.

“Esta é a realidade que denunciamos há anos”, explica Maria Mashako. “Esta falta de financiamento é em grande parte responsável pela falta de testes gratuitos e de medicamentos para as pessoas, pela escassez de formações para profissionais de saúde e pelas enormes enormes desigualdades nos serviços de VIH entre províncias.”

De acordo com o programa nacional de controlo da sida, apenas três províncias do país dispõem de equipamentos adequados para testar a carga viral de pacientes – ferramentas que são cruciais para avaliar a evolução da infeção e a eficácia do tratamento.

Estes obstáculos e retrocessos na resposta ao VIH/sida na RDC têm sido confirmados nos últimos anos. Por exemplo, as atividades para reduzir a transmissão do VIH de mãe para filho – testar a mãe e, se necessário, providenciar-lhe tratamento – estão em declínio. Um quarto de todas as crianças que nascem de mães com VIH não têm acesso a profilaxia pediátrica no nascimento, devido à escassez de antirretrovirais pediátricos. Para além disso, dois terços das crianças a viver com VIH não estão a receber tratamento com antirretrovirais.

“O VIH não será erradicado na RDC se as partes interessadas não ampliarem os esforços”, sublinha a coordenadora médica da MSF no país. “Se me fosse concedido um desejo, pediria para que, daqui a 20 anos, já não fosse necessária a MSF para tratar tantos pacientes com VIH na República Democrática do Congo.”

Em 2022, a MSF está a prestar apoio ao Ministério da Saúde na prestação de cuidados e serviços para o VIH/sida em Kinshasa e em seis províncias da RDC (Kivu do Norte, Kivu do Sul, Maniema, Ituri, Kasai Oriental e Kongo Central). Este apoio abrange a assistência direta de pacientes, formações a profissionais de saúde e o fornecimento de medicamentos e equipamentos a instalações de saúde.

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