“Por vezes, como médico, você tem a sensação de que falhou”

Maarten Dekker é um médico alemão que trabalha em Batil, um dos quatro campos de refugiados atualmente afetados por um surto de hepatite E na província de Maban, no Sudão do Sul

“Os primeiros casos de hepatite E foram registrados no campo de Batil em julho do ano passado. Quando cheguei aqui, há dez semanas, o número de casos estava caindo e, por isso, a maioria das pessoas esperava que já tivéssemos deixado a fase emergencial para trás. Mas nas últimas três ou quatro semanas, o número de casos começou a aumentar rapidamente. Na semana passada, tivemos 494 novos casos, em comparação com aos 271 das duas semanas anteriores. E também pudemos observar um aumento no número de internações na nossa ala de hepatite E – de 16 para 23 e depois para 46 por semana. Em um único dia, foram 26 novas internações. O número de mortes está, também, aumentando sensivelmente. Quando cheguei, eram uma ou duas por semana; depois tivemos quatro, sete, até que, na última semana, 11 pacientes morreram.

A hepatite E é uma doença que afeta o fígado e não se sabe muito sobre ela. Está além do escopo usual das ONGs e da Organização Mundial da Saúde – de todos, basicamente. Eu nunca havia tratado a doença antes de vir para cá. No momento, muitas pessoas estão se esforçando para entender melhor a doença. Estamos desenvolvendo nosso próprio “protocolo de trabalho”, juntamente com diversos especialistas em medicina interna de todo o mundo para otimizar o suporte dado neste contexto.

Não há cura para a hepatite E
Não há cura para a hepatite E; podemos apenas tratar os sintomas e prevenir algumas das complicações, como hemorragias, baixa taxa de glicose, desidratação ou infecções. O que está de fato matando as pessoas é a falência do fígado. E isso não podemos tratar, o que é frustrante, muito frustrante. Você está fazendo seu melhor como médico, mas, basicamente, é como se não estivesse fazendo o suficiente.

Quando há muita toxina no corpo por conta do mau funcionamento de seu fígado, as pessoas ficam muito confusas ou mentalmente alteradas. Geralmente, entram em coma por cerca de cinco dias. E aí, 50 ou 60% sobrevivem. Ou se recuperam ou morrem.

Lidando com a morte
Desde que estou aqui, testemunhei cerca de 20 mortes. Como médico, é estranho, porque você meio que acostuma com isso, a ver pessoas morrendo. As primeiras mortes são frustrantes, mas depois você estrutura mecanismos de defesa internos para não se envolver muito emocionalmente. Claro que construir um relacionamento com seus pacientes é importante para que haja um entendimento mútuo. Por isso, você tenta encontrar um equilíbrio entre relacionar-se com seu paciente e estar apto a ajudá-lo e ter compaixão e, ao mesmo tempo, não se envolver tanto emocionalmente. Se isso não for feito, você não consegue mais trabalhar. É difícil.

Por incrível que pareça, é a geração mais jovem e forte que é mais afetada. Jovens como eu, com seus 20, 25 ou 30 anos, que estão morrendo. São rapazes e jovens moças, mas não muitas crianças ou pessoas com mais de 40 anos.

Gestantes em grande risco
Se considerarmos o panorama geral da mortalidade, de cada 100 pacientes, dois morrerão – a taxa de mortalidade é de 2%. Para gestantes, a taxa é de cerca de 20%. E por que isso? Não sabemos. Tivemos casos de mulheres que deram à luz e em seguida estavam bem. E tivemos um número de mulheres que tiveram bebês prematuros. E outros casos ainda em que o bebê sobrevive e a mulher, não.

Eu presenciei apenas uma explosão emocional após uma morte. Geralmente, após a morte de alguém, a família só quer ir embora o quanto antes. Não sei como fazem isso, mas em questão de minutos eles organizam 15 pessoas para carregar o corpo ou nós oferecemos a eles um carro puxado por um burro para transportar o corpo para casa. Acho que deve ser muito difícil para eles ver membros da família morrerem em um hospital, ao invés de em casa. Por vezes, quando um paciente morre, a família chega perto e diz ‘obrigado, obrigado, você tentou’. E algumas vezes você vê essa agonia no olhar deles.

Receio de epidemia no campo de Doro
Por vezes, como médico, você tem a sensação de que falhou. Você não esteve ali no momento certo ou não usou o tratamento adequado na hora certa. O fracasso pessoal é o que mais me machuca. Diante da hepatite E, não tenho tido a sensação de incompletude ou de ter cometido grandes erros. Damos a todos eles o melhor tratamento disponível. E, ainda assim, perdermos pessoas.

Alguns dos médicos do hospital de MSF do campo de Doro, que não fica longe daqui, estiveram conosco. Recentemente, eles observaram alguns casos suspeitos de hepatite E e vieram aprender a maneira como estamos tratando os pacientes. Há cerca de 45 mil pessoas vivendo em Doro. Infelizmente, acho que vai acontecer por lá o mesmo que aconteceu aqui e eles terão de enfrentar a hepatite E por um longo período.”

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