Praticando o autocuidado: empoderando mulheres para cuidar de sua própria saúde

Para as mulheres, o autocuidado pode provocar uma mudança importante na capacidade de tomada de decisões sobre sua saúde

Praticando o autocuidado: empoderando mulheres para cuidar de sua própria saúde

 

Todos nós queremos o poder de investir em nosso bem-estar, para conseguirmos cuidar de nossa saúde emocional, física e mental. Mas sem informações confiáveis, ferramentas adequadas, opções razoáveis e suporte adequado, nem sempre é possível.

O autocuidado está mudando a cara dos cuidados de saúde. O foco é equipar e dar confiança às pessoas para que elas desempenhem um papel central em sua própria saúde. Para as mulheres, isso pode envolver uma mudança importante na capacidade de tomada de decisões sobre seus próprios cuidados, quando elas podem não ter tido essa autonomia antes.

Em nossos programas, Médicos Sem Fronteiras (MSF) também tem observado como o autocuidado pode melhorar o acesso e a qualidade dos serviços de saúde.

Mas, como o autocuidado pode capacitar mulheres e meninas em comunidades afetadas por crises a ter uma vida mais saudável, assim como mulheres em qualquer outro lugar do mundo?

 

O que é autocuidado?

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define autocuidado como “a capacidade de indivíduos, famílias e comunidades de promover a saúde, prevenir doenças, manter-se saudável e lidar com doenças e deficiências com ou sem o apoio de um profissional de saúde.”

Como uma organização médico-humanitária, MSF está adotando o autocuidado com uma abordagem centrada no paciente, capacitando pessoas com o conhecimento e as habilidades necessárias para praticar o autocuidado com segurança, mas mantendo o acesso a serviços de saúde regulares quando precisarem ou desejarem.

O autocuidado inclui:

        •       Autogestão de medicamentos, tratamento, exame, injeção e administração.

        •       Auto-testes que vão desde a amostragem e triagem até o diagnóstico, coleta e monitoramento.

        •       Autoconsciência, abrangendo autoajuda, autoeducação, autorregulação, autoeficácia e autodeterminação.

O autocuidado não significa que as pessoas tenham que gerir individualmente sua saúde sem apoio; trata-se de dar confiança às pessoas para que elas possam gerir parte de seus próprios cuidados de saúde, se assim decidirem.

Testes e tratamentos simplificados, dispositivos de ponto de atendimento e tecnologia móvel tornaram o autocuidado mais possível nos últimos anos – com grande benefício potencial para mulheres e meninas.

 

Por que o autocuidado é importante para as mulheres?

No mundo todo, muitas mulheres ainda não têm acesso a cuidados de saúde essenciais e lutam para lidar com questões de saúde sexual e reprodutiva que podem ser estigmatizadas.

Quase uma a cada quatro mulheres em idade reprodutiva ainda não tem acesso a métodos contraceptivos modernos para ajudá-la a planejar ou limitar sua gravidez. Pouco mais da metade das pessoas com mais de 15 anos que vivem com HIV em todo o mundo são mulheres. O aborto inseguro continua sendo uma das principais causas de morte em mulheres grávidas que não têm acesso a uma alternativa segura.

As muitas barreiras sociais, econômicas, logísticas e outros obstáculos ao acesso à saúde podem ser agravados pela violência e discriminação. A situação também se agrava em crises humanitárias agudas. Agora, a COVID-19 ampliou as discrepâncias dos serviços de saúde nesses ambientes, piorando os índices de saúde sexual e reprodutiva. E, embora os confinamentos tenham sido promovidos para nos manter em segurança, eles também aumentaram o perigo para algumas mulheres em casa.

Nessas circunstâncias, os obstáculos podem ser tão grandes que as mulheres não chegarão nem para pedir ajuda, mesmo que precisem.

O autocuidado é uma oportunidade de resolver esse problema, como reconhecido pela OMS em suas primeiras diretrizes de intervenção de autocuidado em 2019, desenvolvidas especificamente sobre saúde sexual e reprodutiva.

 

Como o autocuidado melhora os cuidados de saúde?

O autocuidado pode expandir o acesso à saúde em locais remotos, contextos instáveis ou áreas com infraestrutura de saúde precária. Pode expandir os cuidados de saúde para fora do hospital ou da clínica e para além do médico ou da enfermeira. Pode ser uma resposta pragmática em que os recursos de saúde são ampliados, mas também permite vínculos com os cuidados onde antes não existiam.

Intervenções de autocuidado podem oferecer opções de saúde baseadas em evidências e de baixo risco direta e discretamente na comunidade ou nas residências das pessoas – como a contracepção autoinjetável. Oferecendo mais conveniência ou mais confiabilidade, as abordagens de autocuidado podem permitir o diagnóstico antecipado e a oferta de cuidados médicos em tempo hábil – como o autoteste de HIV.

Ao focar nas necessidades individuais da mulher, também é possível melhorar a qualidade da assistência médica que ela recebe: cuidados adequados, respeitosos e baseados em uma relação de confiança.

Para algumas mulheres, o autocuidado pode ser a única alternativa segura, sem o qual podem ser forçadas a buscar serviços perigosos ou perder completamente a esperança de receber cuidados. No caso do aborto autogerido com medicamentos para prevenir um aborto perigoso, o autocuidado pode salvar vidas.

 

Como as mulheres podem ser empoderadas por meio do autocuidado?

O autocuidado empodera as mulheres porque lhes dá acesso a informações e serviços que lhes permitem decidir o que funciona melhor para elas. As mulheres ganham escolhas e autonomia.

O autocuidado também permite que as mulheres ajudem e cuidem de outras pessoas em sua comunidade, compartilhando informações confiáveis entre si, prestando cuidados como agentes de saúde comunitárias e envolvendo-se com pessoas dentro da mesma experiência vivida e com necessidades de saúde similares.

 

Como MSF está apoiando o autocuidado?

Em MSF, promovemos o autocuidado como parte de uma abordagem de saúde centrada no paciente. À medida que resultados baseados em evidências crescem, continuamos testando diferentes ações para entender o que funciona e para quem. Sabemos que muitas vezes são as comunidades que podem liderar o caminho, e nenhum modelo é único para todos.

Seja qual for a opção de autocuidado, sempre garantiremos que as mulheres tenham acesso a um profissional de saúde treinado quando quiserem ou precisarem e que possam ser encaminhadas para a próxima etapa do tratamento em tempo hábil.

Isso é extremamente importante, pois o autocuidado não deve substituir os cuidados de saúde formais. Ele precisa fazer parte do processo contínuo de cuidados, desde o sistema de saúde formal até os modelos de cuidados baseados na comunidade. É preciso agregar valor, não ficar em segundo plano para as pessoas que de outra forma seriam excluídas do acesso a cuidados.

MSF sempre buscou inovações para superar a exclusão e, com mulheres e meninas como nossas parceiras, temos a empolgante oportunidade de inovar um pouco mais.

 

Onde MSF está integrando o autocuidado a seus projetos?

No distrito de Shiselweni, em Essuatíni, oferecemos autoteste oral para HIV em nosso programa de prevenção e tratamento contra HIV e TB desde maio de 2017. O país tem a maior prevalência de HIV do mundo. O investimento nacional em cuidados abrangentes reduziu a transmissão, mas ainda existe um estigma considerável associado ao HIV, frequentemente associado à desigualdade social.

Conhecimento é poder e, para as mulheres, saber seu status sorológico significa que elas podem assumir o controle de sua própria saúde. Muitas mulheres em nosso programa fizeram o autoteste oral; com um tempo de espera de apenas 20 minutos pelos resultados, elas podem se testar com segurança uma vez por mês no conforto de sua casa. Elas também são motivadas para ir além: se estiverem sob um risco particularmente alto, devem realizar a profilaxia pré-exposição (PrEP) ou encorajar outras mulheres a testar ou a tomar medicamentos. E, se seu resultado der positivo, nossos conselheiros podem apoiá-las, pessoalmente ou por telefone, para poderem auto-gerenciar e continuar seu tratamento antirretroviral.

Em Nablus, Palestina, nosso projeto especializado em saúde mental para pessoas com transtornos mentais moderados a graves e vítimas de violência trata crianças e adultos, entre eles vítimas de violência doméstica. No ano passado, enquanto os lockdowns por causa da COVID-19 restringiam o movimento em comunidades ao redor do mundo, as mulheres em Nablus foram repentinamente confinadas em casa, sem chance de escapar de seus agressores. A única maneira de alcançá-las e continuar nosso apoio era por meio de nosso aconselhamento remoto – algo novo para nossas terapeutas e pacientes.

Logo surgiram evidências em todo o mundo de que a violência por parceiro íntimo estava crescendo na pandemia. A situação em Nablus não era diferente e, preocupantemente, o abuso também aumentou em gravidade, colocando a segurança das mulheres em maior risco. Mas, como prova da resiliência das mulheres, elas se adaptaram e inovaram. Elas trabalharam com suas terapeutas para desenvolver planos de segurança; estabeleceram regimes de autocuidado para ajudar a reduzir sua ansiedade quando as coisas estavam calmas; escolheram palavras de código para avisar que seu parceiro poderia ouvir a ligação de aconselhamento. Na verdade, menos mulheres abandonaram o aconselhamento do que antes.

Depois que o confinamento foi flexiblizado, embora em quantidade restrita, foi importante poder ver as pacientes de maior prioridade cara a cara novamente. Mas a COVID-19 mostrou que o aconselhamento remoto pode ser viável e eficaz, e pode ser oferecido além da terapia presencial como outra forma de atendimento.

No ano passado, no distrito de Gutu, no Zimbábue, nosso programa de prevenção e tratamento precoce do câncer de colo de útero, em parceria com o Ministério da Saúde e Assistência à Criança do Zimbábue, foi o impulso para um estudo comparativo entre mulheres que realizam o auto-teste para infecção por papilomavírus humano (HPV) e mulheres testadas por uma enfermeira. Sem um melhor acesso à prevenção do câncer de colo de útero, as mulheres em países com alta prevalência, como o Zimbábue, continuam enfrentando uma morte prematura.

O método de diagnóstico conhecido como Inspeção Visual com Ácido Acético, a base de nosso programa e outros como ele, necessita de recursos humanos, treinamento e equipamentos que possam permitir sua implementação. E se o teste vaginal mais simples para coletar uma amostra de DNA de HPV pudesse ser conduzido de maneira eficaz não apenas por enfermeiras, mas pelas próprias mulheres? Isso poderia expandir significativamente o acesso ao diagnóstico para mulheres incapazes de chegar até profissionais de saúde ou clínicas.

O estudo revelou que enfermeiras e pacientes leigas foram igualmente eficazes na coleta de uma amostra. A maioria das mulheres considerou o procedimento de auto-coleta confortável; e quase todas recomendariam a uma amiga a auto-coleta para teste de HPV.

Na saúde sexual e reprodutiva, o aborto seguro é o mais restrito de todos os cuidados. Com o aborto por medicamentos e seu regime de pílulas tomadas ao longo de 24 horas, a interrupção da gravidez não foi apenas simplificada, mas pode também estar disponível na privacidade da própria casa de uma mulher ou menina.

 

Conclusão

Há um grande potencial para expandir cuidados de qualidade centrados no paciente, voltados para mulheres e meninas, por meio de abordagens de autocuidado, especialmente em contextos onde MSF trabalha: locais afetados por uma crise aguda ou de difícil acesso. O autocuidado deve estar sempre vinculado à assistência médica regular, mas pode desempenhar um papel particularmente útil onde há pouca infraestrutura de saúde ou poucos profissionais de saúde, ou onde pessoas marginalizadas precisam de cuidados fora de um sistema formal.

Com base em nossa experiência em tais ambientes, trabalhando com autoridades de saúde, organizações locais e comunidades tradicionais, acreditamos que muito pode ser alcançado para construir a capacidade de integrar o autocuidado e permitir que mulheres e meninas contribuam para sua própria saúde e bem-estar.

Vamos empoderar mulheres e meninas, confiando que, dadas as informações e ferramentas certas, elas podem se envolver em seus próprios cuidados para se manterem saudáveis, não importa onde estejam.

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