Prestar cuidados médicos a pessoas em toda a Etiópia

Equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF) têm dado resposta a múltiplas emergências ao longo dos últimos meses em diversas zonas do país

Etiópia: equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF) têm dado resposta a múltiplas emergências ao longo dos últimos meses em diversas zonas do país
© Gabriella Bianchi/MSF

É estimado que mais de 22 milhões de pessoas precisam de assistência humanitária na Etiópia em 2022. Muitas enfrentaram as consequências trágicas de conflito, especialmente as comunidades nas regiões de Afar, Amhara, Tigré e Nações do Sul (RNNPS).

Em simultâneo, desastres naturais empurraram até ao limite os mecanismos das pessoas para lidarem com as dificuldades. Comunidades por toda a vasta região Somali enfrentaram o que é descrito como a mais grave seca em 40 anos, e, quando as cheias assolaram a região de Gambela, mais de 180 000 pessoas foram forçadas a deslocar-se das suas casas e as estruturas de saúde sofreram danos extensos.

A Médicos Sem Fronteiras (MSF) presta respostas às necessidades de emergência médica e humanitária a pessoas em todas estas regiões, incluindo as que são afetadas por doenças tropicais negligenciadas mortais que são endémicas na Etiópia. As equipas da MSF partilham aquilo que têm observado no que toca às necessidades e aos impactos da ação humanitária na Etiópia.

Zona de Sitti, na região Somali: clínicas móveis de estabilização nutricional

“Ao longo de três meses, entre julho e setembro, demos resposta a uma emergência terrível na Zona de Sitti, na região Somali da Etiópia, uma área que é ciclicamente assolada por uma combinação de seca e cheias, perda de meios de subsistência, assim como por conflito próximo e deslocações populacionais”, descreve a coordenadora de projeto MSF Anna.

“O desafio foi encontrar forma de dar resposta às necessidades enormes de comunidades espalhadas por uma vasta área. A MSF ativou clínicas móveis de estabilização nutricional em diversas localizações que levaram a cabo rastreios e uma primeira resposta à desnutrição com alimentação terapêutica”, prossegue. Este programa destinou-se a crianças, mas foram providenciados cuidados médicos também a vários adultos desnutridos e realizadas transferências de pacientes com complicações associadas à desnutrição, para a estrutura de alimentação terapêutica em regime de internamento em que a MSF presta apoio em Asbuli, para lhes serem prestados cuidados mais avançados.

“Durante este projeto, quase 2 600 pessoas receberam consultas médicas. Sabemos que a nossa ação foi limitada, uma vez que apenas podíamos dar resposta às necessidades das pessoas que conseguíamos alcançar ou das que conseguiam chegar até nós. Mas considero que foi uma ação bem sucedida porque foi lançada no momento certo e, junto com o trabalho das autoridades regionais e outras organizações, sem dúvida que salvou vidas e ajudou a diminuir a lacuna causada pela falta de alimentos para as pessoas, até que as chuvas finalmente chegaram”, explica ainda a coordenadora de projeto da MSF.

Zona de Liben, na região Somali: resposta a cólera

O pico da época de desnutrição passou em novembro. E conforme a resposta de emergência da MSF à desnutrição começou gradualmente a terminar, outras equipas da organização médico-humanitária preparavam-se para reforçar a resposta a um surto de cólera. Equipas médicas deram arranque a formações práticas sobre gestão de casos de cólera a profissionais médicos locais. E, ao mesmo tempo, peritos da MSF em logística e em água e saneamento estavam a garantir acesso a água segura e higiene – uma perícia crucial que frequentemente se desenrola de forma menos visível na ação médica da organização, mas que é indispensável.

As equipas da MSF levaram cinco dias para chegar a Kersa Dula, na Zona de Liben, e dar início à resposta ao surto que estava em rápida propagação. A cólera é uma doença que pode precipitar ou agravar a desnutrição.

“Chegada ao local, a equipa apressou-se a montar uma unidade de tratamento de cólera com latrinas e chuveiros. E como o número de pessoas afetadas na Zona de Liben aumentava, a equipa construiu também uma unidade de estabilização em Baliat”, refere a responsável da MSF por água e saneamento, Najah Aden Mire.

“E no campo de Adeley, onde vivem cerca de 75 000 pessoas deslocadas internamente e que é também o campo mais afetado pela epidemia de cólera, a equipa montou centros de tratamento de cólera, pontos de lavagem das mãos, construiu 12 latrinas e uma estação de tratamento de água para providenciar às pessoas acesso a água segura, limpa e potável. Foram igualmente instalados no campo pontos de reidrataçao oral”, conta ainda esta perita da MSF.

Com casos de cólera e de sarampo a serem já reportados, há um elevado potencial de propagação de mais surtos, incluindo de outras doenças. As equipas da MSF trabalharam em parceria com o Gabinete Regional de Saúde, providenciando formações em gestão de casos e em prevenção e controlo de infeções a profissionais de saúde locais.

Região de Amhara: comunidades afetadas por conflito

Nas zonas rurais do Norte de Amhara afetadas por conflito, as pessoas enfrentaram violência, perda de propriedades e bens e debatem-se para ter acesso a serviços essenciais como cuidados de saúde, devido à disrupção nos sistemas. Meses de conflito na região esgotaram os mecanismos das pessoas para lidarem com as dificuldades.

“Vemos aqui necessidades muito grandes. A maior parte dos nossos pacientes estão afetados por depressão, alguns perderam familiares ou as casas deles foram destruídas, outras pessoas podem ter perdido os meios de subsistência”, frisa o supervisor dos serviços psicossociais da MSF Demeke. “Alguns dos nossos pacientes são sobreviventes de violência ou podem ter testemunhado acontecimentos traumáticos e agora sofrem de transtorno de stress pós-traumático.”

Demeke dá um exemplo: “Frehewot é uma paciente nessas condições. Esta criança de seis anos foi trazida pelos pais à nossa clínica depois de ter começado a urinar durante o sono. Mostrou-se evidente que os sintomas dela se tinham desenvolvido subitamente após ter testemunhado violência e visto os corpos de pessoas mortas caídos à beira da estrada”, conta ainda o supervisor dos serviços psicossociais da MSF.

Cuidados de saúde da mulher e apoio psicossocial são centrais na resposta da MSF de entre os serviços essenciais de saúde que as equipas móveis da organização médico-humanitária providenciam nesta região.

“As nossas equipas móveis têm vindo a tratar sobreviventes de violência sexual e com base no género. São disponibilizados cuidados médicos e também apoio psicossocial”, conta a médica Noortje, uma das profissionais médicas que integra a equipa clínica móvel da MSF a trabalhar em Amhara. “As histórias que lhes ouvimos são muito semelhantes entre si. Num desses casos, uma mulher de 45 anos sofreu abuso sexual há um mês. Chamemos-lhe Lilian [nome fictício para proteção da identidade da paciente]”, avança esta médica da MSF.

Há muito estigma associado à violência sexual e, por cada pessoa que procura tratamento, muitas outras não o fazem. Quando Lilian veio pela primeira vez à clínica, ela estava a sentir dores inexplicáveis no abdómen. As pessoas preocupam-se com infeções graves como o VIH, por isso dedicar tempo para explicar os riscos e a profilaxia pós-exposição faz uma enorme diferença. E, depois de receber cuidados médicos, percebi com clareza que ela se sentia já aliviada e tranquilizada”, recorda Noortje.

Campo de Kule: a MSF não tem fronteiras

No campo de Kule, onde vivem agora mais de 50 000 pessoas oriundas do Sudão do Sul e que para ali fugiram em busca de refúgio, equipas médicas da MSF prestam serviços primários e secundários de saúde e providenciam tratamento a pacientes em internamento hospitalar e em regime ambulatório.

“Conduzi durante 45 minutos para trazer a minha filha e a minha mulher ao médico”, conta Temesegen, funcionário público que trabalha no Serviço de Refugiados e Retornados. “Não é a primeira vez que venho a um hospital da MSF. Em 2019, fui internado em estado crítico. Nessa altura, fui primeiro a um centro de saúde, mais próximo de onde vivo, para obter tratamento, mas como não estava a melhorar disseram-me para tentar junto de outra organização chamada MSF, no campo de Kule. Mesmo sem existirem outras opções, a MSF presta serviços da melhor qualidade”, considera.

O médico Hailemariam, que trabalha no serviço de urgências do centro de saúde em Kule, frisa que os pacientes assistidos pela MSF “não são só refugiados do Sudão do Sul”.

“Também prestamos serviços à comunidade anfitriã. Muitas pessoas da região trabalham aqui para diferentes organizações de ajuda humanitária, assim como para a organização da Etiópia para refugiados. Há ainda pessoas que vêm de outros campos de refugiados e podem levar quatro horas para aqui chegar. A maioria dos nossos pacientes são crianças com menos de 5 anos e grávidas. Temos um formulário de registo onde anotamos de onde as pessoas vêm, apenas e especificamente por razões médicas, porque na MSF não fazemos distinção na prestação de tratamento aos pacientes. Eu também não sou daqui, venho de Addis-Abeba, outros colegas vêm de Gambela, na MSF não há fronteiras.”

Abdurafi, região de Amhara: mordeduras de cobra

Tanto o envenenamento por mordedura de cobra como a leishmaniose visceral (ou kala-azar), que é a segunda mais mortal doença parasitária no mundo, são endémicos na Etiópia e estão entre as doenças mais negligenciadas no globo.

“Tínhamos acabado de reabrir a nossa clínica em Abdurafi, quando, três dias depois, um rapaz de 12 anos nos foi trazido em estado de quase morte, vindo do hospital em Metema. Tinha sofrido envenenamento devido a uma mordedura de cobra no pé direito, em Abdu, a aldeia onde vive, a cerca de 100 quilómetros de distância de Metema”, conta o responsável pelas atividades médicas da MSF em Abdurafi, Kassaye. “Os médicos de lá tinham conseguido pô-lo numa ambulância e enviá-lo para Abdurafi, para a estrutura onde, desde 2015, a MSF providencia tratamento antiveneno gratuito e de qualidade. Chegou-nos em muito más condições. Nem mesmo os irmãos dele acreditavam que iria recuperar. Vomitava sangue, a pulsação era quase impercetível, estava em choque hemorrágico e semiconsciente.”

Kassaye sublinha que a equipa da MSF “não tinha tempo a perder”. “Colocámos-lhe imediatamente dois soros, um com o antiveneno e o outro com fluidos de reidratação. Passada uma hora, ele ainda vomitava, pelo que lhe fizemos uma transfusão de sangue e demos mais antiveneno. Duas horas depois, a pressão arterial já recuperara mas ele continuava a perder sangue e demos-lhe mais outra dose de antiveneno. Tentámos tudo. Usámos 12 frascos de antiveneno para tratar esta criança. Foi realmente incrível que ele tenha conseguido recuperar.”

“Juntei-me à MSF por causa do impacto que tem na vida das pessoas como este rapaz, e pelos princípios da organização. E aquele que considero ser mais vital é o da imparcialidade. Está no cerne da MSF: prestamos assistência a todas as pessoas, independentemente de quem sejam ou de onde vêm”, frisa Kassaye.

O responsável pelas atividades médicas da MSF em Abdurafi recorda também um outro paciente: “Foi em novembro de 2019, na fronteira com o Sudão, não longe da clínica em Abdurafi. Um dia, um homem sudanês chegou ao nosso centro de saúde. Estava doente com kala-azar, doença que é transmitida pelo insecto [flebótomo] que as equipas da MSF tratam nesta clínica. Não nos conseguíamos perceber um ao outro porque ele não falava uma palavra de amárico [língua oficial da Etiópia], apenas árabe.”

A equipa da MSF procurou alguém na vila que soubesse traduzir e logo encontraram quem o pudesse fazer. “O homem foi tratado, conseguiu recuperar e recebeu alta. É isto que a MSF é: não discriminamos, não olhamos de onde as pessoas vêm, qual é a religião delas, ao que são leais e em que acreditam”, reitera Kassaye.

 

A Médicos Sem Fronteiras trabalha na Etiópia há 37 anos, providenciando assistência médica a milhões de pessoas afetadas por conflito, epidemias, desastres ou com limitado acesso a cuidados de saúde, em colaboração com as autoridades etíopes a nível local, regional e nacional. Todas as atividades da organização são guiadas por princípios humanitários: humanidade, independência, neutralidade e imparcialidade.

 

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