Quênia: MSF atende sobreviventes de violência sexual

Vidas que se cruzam: queniano coordena equipe nas atividades de assistência no leste da capital do país

Quênia: MSF atende sobreviventes de violência sexual

Uma parte da história de vida de Michael Njuguna é um pouco da história de Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Quênia. Ele tem 38 anos e trabalha há nove para a organização humanitária internacional. Njuguna nasceu e cresceu na favela de Mathare, Eastlands – zona leste da capital, Nairóbi, uma área onde vivem cerca de 2 milhões de pessoas e a organização mantém atualmente três projetos.

Caçula de oito filhos, Njuguna é o único que terminou os estudos, depois que uma organização não governamental o ajudou, e agora serve de exemplo para os 18 sobrinhos – seis deles já completaram o equivalente ao ensino médio. “Acho que foi aí que despertei para o trabalho humanitário”, avalia.

Njuguna é um sonhador. Já viajou para a Europa e adoraria conhecer o Brasil. Aqui, uma de suas vontades é andar por favelas cariocas para descobrir o quão diferentes ou semelhantes são das quenianas. Quanto ao povo, ele já sabe o que é igual: todo mundo leva futebol a sério e para para ver a seleção canarinho na Copa do Mundo.

A viagem é um desejo pessoal, mas o objetivo de vida dele é algo maior. Njuguna começou a trabalhar para MSF porque precisava de emprego. Não demorou muito e recebeu de um colega uma oferta de bolsa para estudar nos Estados Unidos. Sabia que era uma grande oportunidade para mudar a própria vida, mas ele queria mais. Resolveu permanecer no Quênia porque viu em MSF uma grande oportunidade para mudar a vida da própria comunidade.  

Médicos Sem Fronteiras está no país desde 1987, trabalha com diversas populações em vários pontos do território nacional e, na capital, está nas áreas de maior densidade e vulnerabilidade, incluindo a maior favela do Quênia, Kibera. Depois de 20 anos oferecendo cuidados de saúde primária e secundária, o centro de saúde Kibera South – construído por MSF – está sendo passado para a organização AMREF.  Os profissionais de MSF atuaram no tratamento para o HIV e para doenças não transmissíveis, atendimento de saúde materno-infantil, além de outros serviços médicos em áreas às quais milhares de pessoas não têm acesso. Tudo de forma gratuita.
Em Eastlands, há duas clínicas de MSF: uma para tratamento de tuberculose multirresistente e outra para sobreviventes de violência sexual e de gênero. Nesta última, está baseado o projeto de emergência, com equipes e ambulâncias 24 horas para atender casos súbitos, como um infarto, e vítimas de incidentes como o ocorrido em abril de 2016, quando o desabamento de um prédio residencial deixou 49 mortos – 76 pessoas foram resgatadas com vida por MSF, a maioria atendida no local, enquanto 22 foram encaminhadas para atendimento. MSF ainda apoia quatro instalações do Ministério da Saúde na região: uma para atendimento de tuberculose resistente, duas de atendimento a sobreviventes de violência sexual e de gênero e um hospital de emergência.

A equipe que atua especificamente com violência sexual é coordenada por Njuguna, que é especialista em desenvolvimento comunitário. Parte do grupo também nasceu, cresceu e ainda vive na favela ou muito próximo dela.

O projeto foi iniciado por causa da onda de violência pós-eleitoral de 2007, quando gangues de diferentes origens étnicas e milícias se enfrentavam na disputa por território e poder. Na época, MSF mantinha somente uma clínica para atendimento de pessoas com HIV e tuberculose, e Njuguna atuava como agente de ligação entre MSF e a favela. “Havia violência na comunidade, mas o tipo de ferimentos que víamos nas pessoas que chegavam à clínica era diferente para mim. Cortes de facão no pescoço, facadas na direção do coração, tudo sistemático”, lembra. “Os agressores sabiam exatamente o que estavam fazendo.”

“Recebemos alguns casos durante a votação, mas, quando saíram os resultados das urnas, o mundo desabou. Foi quando muitas organizações não governamentais foram embora. Houve saques, incendiaram casas, o transporte público foi paralisado e havia muitos estupros. Foi como se o complexo de favelas estivesse em guerra”, resume.

Fazia parte da sua função à época levantar informações na comunidade sobre o que estava acontecendo e, assim, colaborar na avaliação das necessidades de saúde que poderiam ser supridas pela organização. MSF montou uma clínica de trauma, que funcionou até fevereiro de 2008, quando houve uma espécie de acordo de paz. A organização identificou que a violência sexual, porém, era persistente naquela região, e montou uma pequena equipe para tentar agilizar o atendimento aos sobreviventes, já que as primeiras 72 horas são cruciais para o uso de medicação que reduz as chances de contaminação por HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis, além de gravidezes indesejadas.

“Quando começamos, recebíamos sete casos por mês. Precisávamos conversar com os líderes e as autoridades locais, despertar a comunidade para o nosso trabalho. Depois, aumentamos para 25 casos por mês, com uma equipe de cinco pessoas, incluindo o motorista, e trabalhávamos das 8h às 17h de segunda a sexta”, relata Njuguna. “Hoje somos 32, funcionamos 24 horas e recebemos perto de 250 sobreviventes por mês”, conta.

Em 2015, MSF atendeu mais de 2,5 mil vítimas de violência sexual e de gênero no Quênia. Este é o maior projeto de MSF na área de violência de gênero em todo o mundo.

A clínica oferece, em total confidencialidade, prevenção a doenças sexualmente transmissíveis – incluindo hepatite B e HIV, se o paciente chegar em até 72 horas, e gravidezes indesejadas; cuidados para traumas físicos; suporte psicossocial e aconselhamento; encaminhamento para outros serviços, como auxílio jurídico, proteção e abrigo. Profissionais de MSF também comparecem em juízo para testemunhar e fornecer resultados médicos após exame minucioso de uma vítima de violência sexual.

As crianças são as mais afetadas. Cerca de 55% dos sobreviventes que chegam até a clínica de MSF têm menos de 18 anos – aproximadamente 8% estão na faixa de 0 a 5 anos e 12%, na de 6 a 10 anos. De 2% a 5% são homens, muitas vezes sodomizados, parte deles violentados por uma ou um grupo de mulheres. Atualmente, por causa da sensibilização, 80% chegam a MSF antes de 72 horas.

Um dos casos que mais tocaram Njuguna foi o de uma mulher de 28 anos. MSF foi acionada por telefone e enviou uma ambulância para um parque da cidade, numa área de piqueniques. A vítima estava com um corte profundo no pescoço e tinha sangrado a noite toda na chuva. “Ela estava com os membros, mandíbula e costas fraturados e tinha muitos objetos dentro da vagina, incluindo pedras”, descreve. Ela não conseguia falar e foi levada para a clínica de MSF, de onde foi transferida para um hospital. Não resistiu aos ferimentos.  

Njuguna foi atrás de informações sobre o que havia acontecido e constatou que muitas mulheres eram violentadas naquela área, mesmo à luz do dia. MSF, juntamente com outras organizações que trabalham com sobreviventes de violência de gênero, então mobilizou a comunidade no parque para, num Dia Internacional da Mulher, discutir o tema e clamar por segurança. O resultado foi a inauguração de um posto de polícia no local. “Eu ainda sinto pela moça, mas ao menos conseguimos abrir os olhos da população e fazer algo para mudar a situação”, diz.  

Njuguna esclarece, porém, que a maioria das pessoas que sofrem violência sexual conhece seus perpetradores. São vizinhos, um parente próximo, muitas vezes o pai ou o padrasto, ou até mesmo o professor ou o líder religioso. Por causa do alto nível de vergonha, as vítimas muitas vezes não relatam a violência sexual e raramente recebem os cuidados dos quais necessitam.

Neste sentido, o trabalho de mobilização comunitária e a rede de contatos com as instituições capazes de encontrar vítimas de violência de gênero tem sido fundamental para melhorar o acesso dos sobreviventes à clínica MSF. Hoje, metade dos pacientes são encaminhados pelas autoridades (polícia e chefes, por exemplo), que demonstram claramente o valor da articulação entre os setores para garantir que as vítimas possam ter acesso a cuidados adequados.

No fim de novembro, o governo queniano lançou, juntamente com as Nações Unidas, um programa nacional para combater a violência de gênero. Para MSF, este é um passo positivo que mostra a consciência crescente nos níveis mais altos sobre uma questão nacional que requer mais esforço conjunto de todos os envolvidos, incluindo coordenação eficiente entre as áreas de saúde e judiciária para melhorar o acesso à proteção e justiça para as vítimas de violência sexual e de gênero.

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