Relatório da MSF revela grave falta de proteção e assistência no Darfur Sul

Hospitais e infraestruturas foram destruídos, os alimentos escasseiam e a insegurança é sentida nas estradas, nos campos agrícolas, nos mercados e até em casa

Um trabalhador da MSF descarrega o camião para preparar a distribuição de alimentos nos arredores de Nyala, no Darfur Sul.
©️ Abdoalsalam Abdallah

Violência, insegurança e escassez de alimentos estão a devastar a vida das pessoas no Darfur Sul, Sudão, alerta o mais recente relatório da Médicos Sem Fronteiras (MSF) – Vozes do Darfur Sul. Este relatório reúne testemunhos marcantes que mostram como a violência generalizada, o sistema de saúde em ruínas e uma resposta internacional insuficiente levaram as estratégias de sobrevivência das pessoas ao limite.

“As vozes e histórias das pessoas refletem o sofrimento, os abusos e a crueldade vividos pelas comunidades no Darfur Sul, mas também a resistência e compaixão” frisa o responsável de emergências da MSF no Sudão, Ozan Agbas. “Com a proteção civil colapsada e a ajuda humanitária ainda insuficiente, as pessoas no Darfur Sul exigem ser ouvidas, exigem atenção e exigem ação”, sustenta.

Em 2023, o Darfur Sul foi palco de combates urbanos que destruíram hospitais e infraestruturas essenciais. A presença humanitária, que era significativa antes do início da guerra civil em abril desse ano, desintegrou-se à medida que os confrontos se intensificaram.

 

Zahra Abdullah, de 25 anos, na cozinha do seu abrigo depois de receber um cabaz de alimentos distribuído pela MSF no campo de Al-Salam para pessoas deslocadas, no Darfur Sul.
Zahra Abdullah, de 25 anos, na cozinha do seu abrigo depois de receber um cabaz de alimentos distribuído pela MSF no campo de Al-Salam para pessoas deslocadas, no Darfur Sul. ©️ Abdoalsalam Abdallah

 

Apesar dos combates terrestres terem cessado por agora nesta região sudanesa, a insegurança perdura. As pessoas enfrentam níveis alarmantes de violência nas estradas, nos campos agrícolas, nos mercados e até em casa. São frequentes os relatos de detenções arbitrárias, e roubos e pilhagens são também comuns.

Bombardeamentos aéreos e ataques com drones continuam a atingir o Darfur Sul e outras regiões do país.

 

Violência sexual generalizada

Entre janeiro de 2024 e março de 2025, a MSF prestou cuidados a 659 sobreviventes de violência sexual. Destas pessoas, cinquenta e seis por cento sofreram agressões perpetradas por não civis.

Uma mulher de 25 anos, do Darfur Sul e residente num campo de pessoas deslocadas, conta à MSF: “Quando as mulheres tentam sair do campo para cultivar… eles batem-me, torturam-me… Não há maneira de sair… A filha da minha tia foi violada por seis homens, há apenas seis dias… Sinto-me sem segurança nenhuma, porque se sair, serei violada.”

As pessoas descrevem o medo e a ansiedade das crianças, e os próprios sentimentos de impotência, indignidade e de estarem encurraladas.

“Destruíram completamente as nossas terras – não temos nada. Mataram o meu marido há quatro meses. Agora, ficámos sem nada”, descreve uma mulher deslocada de 21 anos a uma equipa da MSF na localidade de Beleil. “Há três dias que não como… Não sei o que me vai acontecer no caminho para casa. Tenho medo, porque as pessoas que mataram o meu marido podem fazer-me o mesmo.”

A violência arrasou por completo o sistema de saúde. O acesso a cuidados médicos adequados é praticamente inexistente, devido a vários fatores que se agravam mutuamente: unidades de saúde destruídas, danificadas ou abandonadas; profissionais de saúde que fugiram ou deixaram de receber os salários; falta ou rutura do fornecimento de materiais; e pessoas que não conseguem pagar os transportes para se deslocarem até aos poucos serviços que ainda estão disponíveis.

 

Crise de desnutrição prestes a agravar-se

A insegurança está ligada à privação de alimentos, já que a ameaça constante de violência impede o acesso às terras agrícolas e aos meios de subsistência. Entre janeiro de 2024 e março de 2025, a MSF apoiou programas no Darfur Sul que trataram mais de dez mil crianças menores de 5 anos com desnutrição aguda e prestaram cuidados nutricionais a milhares de mulheres e raparigas grávidas ou a amamentar que se encontravam em situação de desnutrição.

Espera-se que a crise de desnutrição se agrave ainda mais com a chegada iminente das chuvas e da época magra (o período ciclíco de escassez alimentar).

 

Mulheres à espera de receber alimentos distribuídos pela Médicos Sem Fronteiras em Nyala, no Darfur Sul.
Mulheres à espera de receber alimentos distribuídos pela Médicos Sem Fronteiras em Nyala, no Darfur Sul. ©️ Abdoalsalam Abdallah

 

Com os preços dos alimentos a disparar, muitas famílias sobrevivem com apenas uma refeição por dia — muitas vezes nem isso. “Dependo apenas do que consigo arranjar, dia após dia”, explica à MSF uma mulher de 24 anos no campo para pessoas deslocadas de Al-Salam. “Se conseguir alguma coisa, comemos. Se não conseguir, não comemos. Esta é a minha vida.”

Desde o início da guerra no Sudão que a resposta das organizações internacionais e das agências da ONU no Darfur Sul tem sido escassa, irregular e lenta, como foi sublinhado por uma mulher de 23 anos em Nyala, em novembro de 2024: “Ouvimos dizer que as organizações internacionais ajudam as pessoas, mas nunca nos trouxeram nada.”

Têm surgido recentemente alguns sinais de melhoria, com agências da ONU a encontrarem, pouco a pouco, formas de fazer chegar ajuda humanitária ao Darfur Sul. E há ONG que estão a reforçar gradualmente a presença e atividades. No entanto, mais de dois anos após o início do conflito, e devido a rígidas restrições de acesso, as agências da ONU continuam sem estar na região para liderar e coordenar a resposta, e as ONG avançam de forma lenta e cautelosa.

 

Apoio a iniciativas locais

As comunidades no Darfur Sul têm demonstrado solidariedade para enfrentar os efeitos da violência. Vizinhos partilham o que têm para comer. Grupos de jovens removem escombros e artefactos explosivos não detonados, e compram medicamentos para pessoas deslocadas que vivem nos bairros. Professores continuam a dar aulas, gratuitamente, em edifícios esvaziados pelas pilhagens.

A MSF tem apoiado iniciativas locais para ajudar no funcionamento de cozinhas comunitárias, na distribuição de refeições a crianças em idade escolar e no apoio a postos de saúde geridos por voluntários. Foram também reabilitadas unidades de saúde e sistemas de abastecimento de água, e a MSF desenvolveu um programa que forneceu alimentos a seis mil famílias em várias zonas do estado.

 

Maria, a profissional MSF, presta atendimento a um paciente no serviço de urgências pediátricas do Hospital Universitário de Nyala, Darfur Sul, Sudão.
Maria, a profissional MSF, presta atendimento a um paciente no serviço de urgências pediátricas do Hospital Universitário de Nyala. ©️ Abdalla Berima

 

Estes programas demonstram que “é possível apoiar iniciativas locais e melhorar os serviços quando há determinação, criatividade e disposição para assumir riscos”, nota Ozan Agbas.

“As organizações locais no Darfur têm o conhecimento e a experiência necessários para providenciar serviços essenciais. Garantir que estas respostas de primeira linha têm acesso a provisões, financiamento e poder de decisão representa um passo crucial para salvar vidas’’, defende ainda o responsável de emergências da MSF no Sudão.

Os testemunhos e os dados médicos incluídos no relatório Vozes do Darfur Sul foram recolhidos no decurso das atividades médico-humanitárias da MSF realizadas entre janeiro de 2024 e março de 2025.

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