Rohingya: dois corvos e um baniano para manter viva a cultura de um povo

No maior campo de refugiados do mundo, em Cox’s Bazar, no Bangladesh, a Médicos Sem Fronteiras (MSF) colabora com a comunidade rohingya para transmitir a história, os desafios, as experiências e a sobrevivência do povo rohingya

© Victor Caringal/MSF

No pátio traseiro do hospital da MSF no campo de refugiados de Kutupalong, em Cox’s Bazar, no Bangladesh, uma árvore esculpida com canas de bambu está pouco a pouco a tomar forma.

Mãos atarefadas trabalham nela, enquanto membros das equipas de saúde se movimentam entre os edifícios e as bananeiras em redor. À volta da montagem da árvore, um grupo de artesãos vai passando entre si tiras de bambu. Torcem as tiras, juntam-nas em camadas e dobram-nas em curvas suaves, depois unem-nas umas às outras com tiras mais finas.

A árvore vai ganhando corpo. É frondosa, com uma copa cheia e arredondada, como uma nuvem, transbordando com a possibilidade de dar sombra a quem venha a sentar-se sob ela e proteger-se do calor. É um baniano – um tipo de árvore muito comum em Myanmar e que Nurus Safar e Nuru Salam, dois artesãos rohingya e co-criadores deste painel, conhecem bem.

A equipa trabalha as canas de bambu para esculpir a árvore. © Victor Caringal/MSF

Durante uma pausa no calor, Nurus Safar e Nuru Salam sentam-se a conversar com Tasman Munro, desenhador social e que com eles está a criar o painel da árvore.

“Quando costumávamos trabalhar e conversar debaixo dos banianos, juntava-se muita gente: era um lugar onde podíamos partilhar ensinamentos e experiências uns com os outros”, conta Nurus Safar, lembrando como eram as coisas em Myanmar, antes de chegar ao Bangladesh. “Gostávamos muito de estar a tecer sob a sombra.”

Atualmente, Nurus Safar e Nuru Salam estão a muitos quilómetros de distância das casas que tinham em Myanmar, mas o baniano volta de novo a ser um lugar para as pessoas se reunirem, um lugar onde ensinar e partilhar a cultura rohingya.

De volta ao trabalho após a pausa, os três artesãos começam a juntar desenhos em papel colorido à árvore feita de canas. Todos tinham sido desenhados no dia anterior por jovens artistas rohingya, enquanto ouviam ser contada uma kyssa (conto popular tradicional dos rohingya).

Lentamente, a montagem brilhante feita de canas e papel colorido ganha forma: o baniano, dois corvos, uma mulher rohingya e folhas de taro. É um painel de kyssa, um presente para partilhar com jovens pacientes rohingya que estão ao cuidado das equipas da MSF.

Bangladesh - Rohingya - Painel 2
Mohammed Rezuwan Khan, contador de histórias rohingya, partilha uma kyssa. © Eloise Liddy/MSF

“Uma ligação que se está a perder aos poucos”

“A história que vamos contar, com os corvos e o baniano, vai tornar os nossos corações mais leves… vai ajudar-nos a recordar e a ligar os nossos corações à terra”, explica Ruhul, que faz parte da comunidade rohingya e integra as equipas da MSF que prestam assistência médica-humanitária nos campos de Cox’s Bazar. “[Essa ligação] está a perder-se aos poucos, especialmente entre os mais jovens.”

Ruhul está sempre a pensar na cada vez maior separação do povo rohingya à terra onde viviam e que era a casa deles. A comunidade rohingya foi forçada, há seis anos, a sair do estado de Rakhine (região historicamente conhecida como Arracão), em Myanmar, e a deslocar-se para os campos no Bangladesh, devido a uma violenta campanha militar empreendida contra eles pelo Exército de Myanmar.

Aquela deslocação forçada ocorrida a 25 de agosto de 2017 não foi a primeira para os rohingya, povo tornado apátrida em 1982 e que tem sido visado com décadas de perseguição e de violência em Myanmar, assim como discriminação e exclusão nos países onde buscam segurança e refúgio.

Ruhul compara a situação vivida pelos rohingya com o provérbio que fala da água a cair numa folha de taro: não importa como a água caia numa folha de taro, ela não deixará rastos. “Há centenas de anos que vivíamos em Myanmar; após [termos sido forçados a] partir, não ficou nenhuma marca. Somos como um povo que flutua – a folha de taro é algo [que nos faz] lembrar a nossa situação.”

Nos campos de Cox’s Bazar, pelo menos um milhão de refugiados rohingya enfrenta atualmente uma crise de saúde, não têm acesso a uma educação adequada e não lhes é permitido trabalhar. Por isso, conforme o tempo passa e o futuro permanece incerto, muitos rohingya concentram esforços em conservar a cultura e a identidade do povo vivas para transmitir esse legado às gerações mais jovens.

Yakub, o contador de histórias que partilhara a kyssa com os jovens artistas para servir de base ao painel-história, concorda. “A nossa cultura está a desaparecer”, lamenta. “Por isso é que é tão importante ensinar as nossas tradições aos jovens. Quando começo a contar uma kyssa, vejo as crianças felizes e a sorrir. Não posso mudar a situação [em que nos encontramos], mas posso pelo menos fazer uma pequena coisa para manter a nossa cultura.”

Bangladesh - Rohingya - Painel 3
Jovens artistas ajudam a completar o baniano. © Victor Caringal/MSF

Parceria para a comunidade

Pelo início de agosto, os jovens pacientes e familiares e também membros das equipas da MSF no hospital de Kutupalong, gerido pela organização médica-humanitária, juntaram-se para participarem na primeira sessão de narração de contos kyssa com os contadores de histórias e o painel que fora construído. Um grupo de crianças pequenas aglomera-se na primeira fila junto ao baniano e aos corvos, e o contador de histórias Mohammed Rezuwan Khan começa a relatar a kyssa no idioma rohingya.

As crianças respondem às perguntas que lhes são feitas pelo contador de histórias, entre gargalhadas e alvoroço. Há alguns momentos de confusão, muita gente a mexer-se, muitos sorrisos.

Finda a atividade, o coordenador-geral da MSF no Bangladesh, Arunn Jegan, partilha com o resto da equipa as impressões que lhe foram deixadas por aquele momento: “Foi muito importante e bonito ver os nossos colegas rohingya partilharem a cultura deles e a kyssa. O povo rohingya é estereotipado muitas vezes como pessoas vulneráveis ou apátridas que não têm o direito a viver livremente em Myanmar nem nos países onde procuram refúgio”.

“Hoje, pudemos celebrar os rohingya como um povo, através da cultura e das tradições deles. Acredito que estes momentos de alegria com enfoque no valor próprio, identidade e origens, são terapêuticos para eles. Há que ter em conta que algumas destas pessoas estão a enfrentar difíceis problemas de saúde mental, e sobretudo com o aproximar da data de 25 de agosto”, junta Arunn Jegan. “Ver que o tempo passa e sem expetativas de que as coisas melhorem é às vezes muito duro de aceitar, mas, pelo menos, com iniciativas como esta, podemos ajudar a pôr as coisas em perspetiva e a sentirem-se melhor”, sustenta ainda o coordenador-geral da MSF no Bangladesh.

Para Tasman Munro, este projeto contribui para redefinir certos estereótipos. “Os rohingya têm passado por muitas situações complicadas e muitas histórias têm sido contadas sobre o povo rohingya. Com este processo de participação coletiva geramos um espaço em que decidem como querem que a história deles seja contada.”

Ruhul expressa que tem muito claro como deseja que essa história seja: “Apesar de sofrermos há cinco décadas, de nos ter sido tirada a nossa terra e termos sido expulsos, continuamos a manter as forças para sobreviver. E é isso que temos de transmitir.”

 

Alguns apelidos das pessoas citadas foram omitidos por questões de privacidade.

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