Rohingya: fragmentos de um passado de paz, num presente de saudade

Salamatullah, Abdulshakour, Habibullah, e Melua são quatro de inúmeros refugiados para quem uma pequena coleção de pertences serve de símbolo de força, resiliência e ligação ao passado. A viagem que enfrentaram, repleta de desafios, continua. Armados com estes pertences, permanecem esperançosos

Bangladesh - rohingya
© MSF/Mohammad Hijazi

Outrora viviam livremente em Myanmar, no estado de Rakhine. Outrora constituíam famílias com esperança no futuro. A comunidade rohingya foi destroçada a 25 de agosto de 2017, quando uma vaga de violência e perseguição obrigou todos a fugir de casa.

Os rohingya são uma minoria étnica de Myanmar perseguida e forçada a fugir do próprio país. Muitas pessoas procuraram refúgio ao longo da fronteira com o Bangladesh, deixando para trás tudo o que conheciam e estimavam. Atualmente, mais de 925 000 rohingya vivem no maior campo para refugiados do mundo, em Cox’s Bazar.

Estas são as histórias de quatro famílias rohingya e dos valiosos fragmentos de uma vida passada que conseguiram trazer para os campos. São pequenos itens, símbolos de memórias, de sonhos e de esperança. São também uma corporização da resiliência e do espírito de uma comunidade determinada, mesmo até numa altura em que cada família enfrenta desafios particulares nos campos.

 

Salamatullah, 42 anos

© MSF/Mohammad Hijazi

Às mãos de Salamatullah está um cesto que contém pertences do passado. Trouxe-os de Myanmar e manteve-os seguros durante os dias de viagem que enfrentou até ao Bangladesh. O cesto contém o essencial: comida, água e roupas.

Ainda dois meses antes da violência escalar em 2017, Salamatullah viu-se forçado a tomar uma decisão repentina: temendo uma detenção arbitrária, partiu de casa e deixou para trás praticamente tudo o que tinha. Trouxe apenas o que conseguiu que, a fim e ao cabo, acabou por ser o essencial para uma viagem desta envergadura: fotos de família, documentos judiciais, um cobertor, uma marmita e o cesto para guardar tudo.

 

Cada dia que passa, fico mais velho, mas continua tudo tão incerto” – Salamatullah, 42.

 

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“Tudo o que tenho aqui dentro foi recolhido e guardado com o tempo contado. As fotos, em especial, deram-me muita força durante a viagem”, frisa.

O documento judicial já conta, por si só, uma história: “tive de pagar uma multa para me libertarem da prisão”, relata Salamatullah, referindo-se a uma detenção arbitrária a que foi submetido no passado. “É uma prova que tenho daquilo que temos de sofrer sem qualquer justificação.”

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Apesar de Salamatullah ter viajado sozinho, a mulher, Subitara, também fugiu de casa com os três filhos mais tarde. Reuniram-se no campo, após terem percorrido caminhos diferentes – são uma família que resistiu à separação.

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O que mais aflige Salamatullah no campo é a incerteza de não saber se alguma vez regressará a casa com a família. “Cada dia que passa, fico mais velho, mas continua tudo tão incerto”, confessa. Naturalmente, a maior preocupação são as crianças. “O que me mantém mesmo acordado à noite é pensar no futuro dos meus filhos nestas condições. Tudo o que eu quero é que eles tenham uma oportunidade de ter uma boa educação e desfrutarem de liberdade.”

 

Melua, 65 anos

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Com 65 anos, Melua tomou a difícil decisão de partir de casa em Myanmar, para fugir à violência. Em retrospetiva sobre a partida, diz: “no calor do momento, peguei em alguns documentos essenciais e nos álbuns de família, no certificado de nascimento da minha filha e numa foto. Até deixei para trás roupas que acabara de lavar.”

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As escolhas de Melua foram providas de pragmatismo. Os documentos não eram apenas um símbolo da história da família, mas podiam também ter uma utilidade potencial nos tempos incertos que se seguiram – um nítido contraste em relação aos tempos de paz antes do recrudescimento da violência.

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Melua recorda a vida passada com uma memória fotográfica: lembra a forma dos pilares de casa, a vedação, o terreno que detinha, as galinhas, os locais favoritos para uma refeição. Uma simples menção da terra natal provoca-lhe um resposta emocional quase automática: “é difícil falar, sem derramar lágrimas”.

Para Melua, voltar só será possível se forem reunidas algumas condições: “para considerarmos regressar”, explica, “tem de haver garantias de proteção, direitos de cidadania e oportunidades para a próxima geração – especialmente no acesso à educação”. Num campo para deslocados, é esta esperança de um futuro melhor para os descendentes que alimenta o espírito de Melua.

 

Abdulshakour, 43 anos

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No passado, a vida de Abdulshakour concentrava-se em torno da famílias – dos setes filhos – e do trabalho – da pesca e venda de peixe no mercado local. Tudo mudou no fatídico 25 de agosto de 2017. Quando o conflito chegou à aldeia onde vivia, seguiu-se o caos e o pânico: “corremos todos para escapar”, lembra Abdulshakour. Por entre a confusão, separou-se da família por 25 (angustiantes) dias. Reuniram-se ainda durante a viagem para o Bangladesh, um caminho que fizeram de barco.

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Devido aos constrangimentos inerentes a fugir de uma violenta perseguição, as pessoas foram aconselhadas a levar apenas um item essencial. Para Abdulshakour, a escolha foi óbvia: a rede que usa para pescar.  “Pensei que seria útil aqui”, explica. Contudo, mais tarde, uma incapacidade física veio preveni-lo de continuar a pescar neste novo meio.

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A vida no campo para refugiados é cada vez mais desafiante. “O tamanho do campo continua o mesmo, mas a população aumentou imenso desde 2022”, nota. Para completar as refeições, as famílias têm muitas vezes de recorrer à venda de rações vegetais para diversificar a dieta. “Nem sempre conseguimos peixe”, acrescenta, enfatizando a necessidade de uma nutrição equilibrada. O nascimento de um dos filhos nestas condições amplifica a realidade desta situação.

 

Tenho tantas saudades da minha terra e da minha família. E ainda não perdi a esperança de regressar um dia.” – Abdulshakour, 43 anos.

 

Para além da rede de pesca, Abdulshakour trouxe também o número da porta de casa, que serve de ligação a uma vida em pausa, um laço tangível para as memórias e para a realidade que outrora conhecia.

 

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Mantém-se em contacto com os dois cunhados que ficaram em Myanmar e recebe deles todas as notícias sobre os desafios correntes que limitam a circulação para áreas mais seguras.

O coração de Abdulshakour permanece na terra natal. “Tenho tantas saudades da minha terra e da minha família”, diz. “E ainda não perdi a esperança de regressar um dia.”

 

Habibullah, 52 anos

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Habibullah trabalhava como condutor em Myanmar. Pai de duas filhas e quatro filhos, recorda um período em que a vida era estável.

Quando a violência eclodiu, pessoas como Habidullah encontraram-se inevitavelmente no meio de uma tempestade. “As nossas aldeias tornaram-se alvos”, lembra com pesar. “Permanecer deixou de ser uma opção viável. Não tivemos outra escolha senão fugir, ou arriscar as nossas vidas.” Com poucos dias para tomar uma decisão que mudaria para sempre as vidas da família, Habidullah partiu para as montanhas em busca de refúgio temporário.

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“Essa primeira viagem deixou-nos próximos do rio na fronteira bengali, a 50 quilómetros de distância”, conta Habidullah. “Escondidos, a tentar ficar em segurança, o som assombroso de tiros distantes e o avistamento de balas eram lembretes crus dos perigos que nos rodeavam.” O caos separou muitos, que depois voltaram a encontrar-se no campo para refugiados.

Apesar das circunstâncias difíceis, a clarividência de Habidullah fez com que guardasse e levasse valiosos documentos, incluindo a carta de condução. “Nestas alturas de incerteza, são estas as provas da minha identidade”, sublinha. Prevendo os possíveis entraves num sítio desconhecido, apercebeu-se de que estes documentos seriam cruciais para criar raízes e garantir algum nível de segurança num ambiente desconhecido: um cartão de identificação de refugiado, um certificado de habitação e uma carta de condução.

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Olhando para o futuro, Habidullah expressa uma grande preocupação em relação à terra natal. “Se a situação melhorar em Myanmar, definitivamente que voltarei. Quem é quer deixar o seu país? Quem deseja não ter estabilidade, nem identidade?” Na voz, nota-se o peso da nostalgia: “tenho saudades de tudo de Myanmar – da minha família, do meu quintal, dos meus animais, da minha casa, da campa dos meus pais.”

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À medida que chegam mais refugiados rohingya aos campos para refugiados, a Médicos Sem Fronteiras (MSF) continua a fornecer assistência médica e humanitária. A MSF trabalha no Bangladesh desde 1985 e em Cox’s Bazar desde 2009, estabelecendo o hospital de campanha de Kutupalong para apoiar tanto refugiados, como a comunidade local. Depois do influxo de refugiados rohingya que fugiram da violência em Myanmar, a MSF reforçou as atividades no Bangladesh para responder às necessidades de saúde. Em 2019, o foco passou para cuidados de saúde a longo prazo: doenças crónicas, como diabetes, ou pressão arterial alta.

Salamatullah, Abdulshakour, Habibullah, e Melua são quatro de inúmeros refugiados para quem uma pequena coleção de pertences serve de símbolo de força, resiliência e ligação ao passado. A viagem que enfrentaram, repleta de desafios, continua. Armados com estes pertences e memórias, permanecem esperançosos.

 

 

 

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