Sobreviventes do Ebola: cura pela partilha

A liberiana Massa sobreviveu ao Ebola, mas na mesma época perdeu sua filha em decorrência da doença. O tratamento psiquiátrico e a união com a neta foram importantes passos no caminho para superar experiências tão traumáticas

Sobreviventes do Ebola: cura pela partilha

Psiquiatra da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras, Frédéric Gelly conta como a sobrevivente do Ebola Massa conseguiu, com a ajuda de sua neta, superar o trauma da morte da filha e aprender a viver o presente.

“Tudo o que Massa conseguia falar sobre era a morte de sua filha.

A filha de Massa adoeceu em decorrência do Ebola depois de ser infectada por alguém na comunidade em que vivia. Ela foi até a mãe para pedir ajuda, e Massa cuidou dela, até ela própria e seu marido também contraírem a doença. Os três foram levados a uma unidade de tratamento de Ebola na capital da Libéria, Monrovia.

Muitos rumores circularam durante o pico do surto de Ebola. Um deles era que o governo estava matando pacientes das unidades de tratamento da doença para roubar e vender seus órgãos. Outro era que os medicamentos dados aos pacientes e o cloro usado para desinfetar roupas estavam sendo usados para matar pessoas. Depois que o marido de Massa morreu no centro de tratamento, ela advertiu sua filha para que não tomasse nenhum dos medicamentos que lhe fossem dados.

Depois de subornar um vigilante, Massa conseguiu escapar da unidade de tratamento, deixando sua filha para trás. Em casa, ela cuidou de seus cinco netos, apesar do medo de infectá-los.

Foi nesse momento que o pesadelo de Massa começou. Toda noite ela sonhava com a sua filha na unidade de tratamento de Ebola, fraca e à beira da morte, chamando seu nome. Como costuma acontecer no transtorno do estresse pós-traumático, seus pesadelos lembravam experiências reais, e remetiam às mesmas emoções e medos ao despertar.  

Em casa, Massa começou a se recuperar lentamente do Ebola. Uma de suas netas, Helena, foi infectada, mas sobreviveu sem ser encaminhada a um centro de tratamento de Ebola.

Um dia, Massa foi informada de que a filha falecera na unidade de tratamento de Ebola. Tendo perdido as pessoas em quem mais confiava – o marido e depois a filha – Massa agora estava sozinha com seus netos. 

A situação era visivelmente traumática. Massa enfrentou a morte de forma direta, tendo ficado doente e perdido as duas pessoas que eram mais importantes para ela. O Ebola parecia ter distorcido a ordem normal das coisas. Primeiro, sua filha tinha chegado em busca de proteção, mas infectou os pais com o vírus mortal. Depois, na tentativa de proteger a filha, Massa recomendou que ela recusasse os medicamentos que poderiam ter salvado sua vida. Atormentada pelo sentimento de culpa, Massa sentia ter perdido a confiança em tudo que ela conhecia.

Massa veio à clínica de MSF para sobreviventes do Ebola um ano depois da morte de sua filha por causa de seus pesadelos. Exausta das noites sem dormir, ela tentava lidar com a vida diária e cuidar de seus netos. Ela nunca falou com as crianças sobre mãe delas. 

Durante as primeiras sessões na clínica, Massa falou sobre as experiências traumáticas pelas quais passou, e logo começou a se sentir melhor. Ela concordou em tomar antidepressivos que a ajudariam a dormir. Seus pesadelos se tornaram menos frequentes. Mas ainda era impossível para Massa falar com seus netos sobre o que tinha acontecido com a mãe deles.

Depois de quatro meses vindo à clínica, Massa trouxe com ela sua neta de oito anos, Helena. Massa contou que a menina sempre parecia estar triste, sempre sentada sozinha no jardim, sem brincar com as outras crianças.

Atendemos Helena duas vezes em sessões individuais. Ela estava ciente do que havia acontecido com sua mãe, e parecia entender que estávamos tentando ajudar sua avó. Mas ela não queria falar sobre seus sentimentos, como se falar de sua mãe significasse que ela estava realmente morta.

Finalmente, organizamos uma sessão conjunta com Massa e Helena. Durante a sessão, pela primeira vez, Massa conseguiu falar sobre sua filha. No fim, ela chorou. Quando perguntamos a Helena no que ela estava pensando, ela respondeu: ‘Ela não deveria chorar. Minha mãe nunca vai voltar.’

Naquela sessão, Massa nos disse o que ela não conseguia dizer à neta e Helena nos disse o que ela precisava falar para a avó. De alguma forma ela pedia que a avó aceitasse a realidade da morte de sua mãe e que se unisse às crianças em sua nova vida. Ela também revelou à avó que compartilhava sua dor e que ela não estava sozinha nisso.

Para Massa e Helena, compartilhar a história e os sentimentos foi o primeiro passo em direção a aceitar a realidade: as palavras podem ser usadas para definir certas coisas e deixá-las para trás. Nossa presença, como testemunhas, permitiu que Massa e Helena conversassem sem estarem completamente sozinhas, e nossa presença como prestadores de serviços de saúde representou a possibilidade de continuar vivendo e tendo fé e confiança mesmo depois de um trauma que fez com que elas acreditassem que seria impossível confiar em qualquer pessoa.

Esperamos possibilitar aos nossos pacientes que eles deixem suas experiências traumáticas no passado, e que vivam no presente, sem tentar esquecer aquilo que é insesquecível.”

Os nomes foram alterados.

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