A Médicos Sem Fronteiras (MSF) é uma organização humanitária internacional que leva cuidados de saúde a pessoas afetadas por graves crises humanitárias. Também é missão da MSF chamar a atenção para as dificuldades enfrentadas pelos pacientes atendidos em seus projetos.
Como organização médica, buscamos sempre oferecer o melhor tratamento disponível aos nossos pacientes. O trabalho de MSF envolve uma grande variedade de atividades, desde a organização de campanhas…
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“Caros amigos,
No mês passado, estive no Sudão do Sul, a nação mais jovem do mundo e também o país com alguns dos piores indicadores de saúde globais. Apesar da taxa de mortalidade materna ter diminuído de mil para 789 mortes por 100 mil nascidos vivos entre 2005 e 2015, ela ainda continua sendo uma das mais altas do mundo. Para colocar isso em perspectiva, a taxa de mortalidade materna na Alemanha é de seis mortes por 100 mil nascidos vivos. Condições evitáveis como malária, diarreia e pneumonia continuam a ser as principais causas de morte entre crianças com menos de cinco anos. O acesso ao tratamento vital para TB (tuberculose), HIV e calazar ainda é um grande desafio para muitas pessoas que vivem em áreas remotas, além dos surtos regulares de sarampo e cólera. Um sistema ineficaz de vigilância de doenças, cobertura de vacinação insuficiente e fornecimento limitado de água potável e serviços de saneamento em muitas partes do país continuam a colocar as populações vulneráveis em risco de doenças evitáveis e surtos. Após décadas de conflito no país, distúrbios mentais – incluindo condições psiquiátricas graves – também prevalecem entre os refugiados do Sudão do Sul e os deslocados internos. De maneira indicativa, em 2019, sete milhões de pessoas – ou cerca de dois terços da população – estavam em extrema necessidade de alguma forma de assistência humanitária e proteção.
MSF está presente nessa área desde 1983. Há dez anos, em 2011, o Sudão do Sul declarou formalmente sua independência do Sudão após um referendo que ocorreu após mais de 20 anos de guerra. Menos de dois anos e meio depois, o país entrou em uma guerra civil marcada por massacres étnicos, assassinatos brutais e direcionados a civis, estupros generalizados, recrutamento de crianças-soldados e outras atrocidades.
Em 2015, um acordo de paz foi assinado, mas os conflitos entre as forças do governo e grupos de oposição eclodiram novamente menos de um ano depois. Em 2018, um novo acordo de paz encerrou cinco anos de guerra civil que matou aproximadamente 400 mil pessoas e expulsou milhões de suas casas. Passou-se menos de um ano desde que um governo de unidade foi formado, mas os conflitos entre comunidades e a violência subnacional destroem o país.
Esta não foi a minha primeira vez no Sudão do Sul. Estive em Gogrial, em 2013, realizando operações dentro de uma barraca inflável. Desta vez, trabalhei em um acampamento. Nossa intervenção no que agora é o acampamento para pessoas deslocadas de Bentiu – um antigo acampamento de proteção para civis (PoC) – começou em 2014 após uma erupção de violência que forçou milhares de pessoas a fugir para a base próxima da ONU no país.
MSF está presente em Bentiu desde 2010, num primeiro momento para apoiar o hospital estadual de Bentiu e depois em uma clínica de nutrição. Com o início da guerra, no final de 2013, essas atividades foram encerradas e nos mudamos para o PoC. Inicialmente, desenvolvemos atividades de água e saneamento para bombear água do PoC – lá era um pântano – e montamos uma clínica. Posteriormente, esta clínica foi transformada no hospital que administramos atualmente.
Esta clínica se tornou uma unidade de saúde secundária com alas de alimentação terapêutica, pediatria, internação, cirúrgica, maternidade e isolamento. Temos uma sala de cirurgia em funcionamento, bem como uma sala de partos. Também temos atividades de alcance e divulgação. O hospital atende mais de 100 mil residentes no PoC e também atua como um centro de referência para casos complicados da região. Há mais de 500 profissionais sul-sudaneses no projeto e 25 colegas de todo o mundo. Passei as últimas semanas na sala de cirurgia. Durante esse tempo, conheci colegas incríveis, tive muitos momentos felizes e desafiadores, além de algumas experiências e emoções que gostaria de compartilhar nesta carta.
Durante as primeiras duas semanas, tive que operar vítimas de violência – especialmente ferimentos à bala – quase todas as noites. A maioria das lesões foram em membros, mas também havia traumas abdominais e torácicos graves. Manter esses pacientes vivos é sempre um desafio, exigindo um grande esforço de toda a equipe e um tempo infindável na sala de cirurgia. E mesmo se a operação for bem-sucedida, infelizmente, os pacientes nem sempre podem ser mantidos vivos devido à falta de unidades de terapia intensiva pós-operatória e ao tratamento realizado em locais com poucos recursos.
A violência no Sudão do Sul passou por diferentes fases, e MSF testemunhou – e também experimentou – vários aspectos delas. Apenas nos últimos 10 anos, perdemos 24 de nossos colegas, que foram vítimas de violência. No mesmo período, sabe-se que pelo menos 176 agentes humanitários foram mortos. Esse nível de insegurança torna-se um gatilho para ainda mais violência e fomenta uma “cultura da arma”. Existem tantas armas no país hoje em dia, em comparação com as lanças e facões que costumávamos ver.
Em nossa sala de cirurgia, tive o prazer e a honra de trabalhar com James, nosso anestesista assistente que começou em MSF há 33 anos e nunca deixou a organização. Ele tinha várias histórias para compartilhar comigo durante os intervalos para o café – tanto as boas quanto as difíceis. Ele mencionou a história que li sobre Leer. MSF estava presente em Leer havia 25 anos, e seu hospital era o único centro de saúde secundário atendendo a quase 300 mil pessoas. No início de 2014, conforme o conflito se aproximava, a cidade ficou cada vez mais insegura e MSF evacuou sua equipe internacional. Os 240 profissionais locais de MSF continuaram prestando cuidados essenciais no hospital pelo tempo que puderam. Finalmente, sendo forçados a fugir, eles levaram pacientes com eles para a floresta. Com suprimentos limitados, nossa equipe realizou mais de três mil consultas em meio à floresta, no período, até o final de abril de 2014.
Durante a minha permanência, também fui confrontado com a violência sexual e baseada no gênero, que continua a ser uma grande preocupação no Sudão do Sul. Os sobreviventes de violência sexual muitas vezes são invisíveis, preferindo não procurar atendimento médico devido às suas potenciais consequências sociais e ao grande desconhecimento das suas possíveis consequências médicas. A estigmatização e muitas outras barreiras culturais e de gênero impedem os sobreviventes de procurar atendimento. É um passo difícil para um sobrevivente revelar e se apresentar para buscar atendimento. “Isso muda seus sentimentos. Isso faz você se odiar. Você sente que não é mais uma boa pessoa pelo resto de sua vida”, disse uma refugiada sul-sudanesa em nosso relatório.
Eu vi pacientes que tiveram que caminhar por dias para chegar às nossas instalações. Certa noite, nossa obstetriz me acordou porque havia chegado uma mulher grávida com um sangramento intenso. Fizemos uma cesárea e salvamos a vida dela, mas infelizmente o bebê já estava morto. Em outro dia, um menino chegou ao pronto-socorro com o pai, em péssimas condições, após dois dias caminhando a partir do seu vilarejo. Achei que ele tivesse apendicite, mas na sala de cirurgia me deparei com um intestino perfurado e peritonite grave por causa da febre tifóide. Agora o menino está de volta ao seu vilarejo, saudável e feliz.
Muitas infraestruturas de saúde, incluindo hospitais, foram destruídas ou seriamente danificadas ao longo dos anos de conflito. Entre cerca de 1.500 unidades de saúde no país, três quartos precisam de pequenas, grandes ou completas reformas. As unidades de saúde primárias – que são tão necessárias – muitas vezes sofrem com escassez de suprimentos, medicamentos e profissionais de saúde em quantidade e qualidade. A prestação de cuidados de saúde no país depende principalmente de organizações humanitárias e, em áreas remotas, os agentes médicos internacionais são geralmente os únicos que asseguram cuidados de saúde especializados para a população local. O encaminhamento de pacientes com condições graves que necessitam de cuidados cirúrgicos continua sendo um grande desafio para os atores médicos, o que implica em custos elevados e restrições logísticas devido à falta de infraestrutura adequada.
O transporte é feito principalmente por via aérea ou fluvial. Os aviões de MSF às vezes precisam transferir pacientes e mulheres grávidas com bastante antecedência, porque quando a estação das chuvas começa, é difícil pousar em pistas de pouso lamacentas.
Eu também tive que operar crianças pequenas com picadas de cobra. Lembro que, em 2013, esses casos eram desafiadores, pois naquela época não tínhamos soro antiofídico e muitas das vítimas tiveram que ser amputadas. Mas agora temos “armas em nosso arsenal”. Eles só precisam ser aplicados no prazo, o que infelizmente nem sempre é o caso. Muitos dos meus pacientes com picadas de cobra conseguiram voltar para casa rapidamente, mas alguns deles tiveram que passar por grandes e dolorosas operações porque, novamente, não havia instalações perto de seus vilarejos para fornecer primeiros socorros.
Nas últimas semanas, em nossos acampamentos para pessoas deslocadas, notamos uma tendência preocupante de doenças transmitidas pela água, juntamente com o aumento do número de casos de malária. Meus colegas disseram que as condições de água e saneamento no acampamento se deterioraram dramaticamente nos últimos meses, e os atores responsáveis não têm fundos suficientes para responder de forma adequada. Algumas das crianças são gravemente afetadas; nem sempre é possível reverter sua condição. Não me esquecerei que alguns dias, enquanto caminhava dentro do acampamento, via em algum canto uma enfermeira ou um médico chorando porque haviam perdido mais uma das crianças de suas enfermarias.
Na noite de 17 de março de 2021, após uma última reunião entre o governador e a comunidade, o acampamento de proteção de civis de Bentiu foi transferido da Missão das Nações Unidas no Sudão do Sul para o governo, e seu nome mudou para acampamento para pessoas deslocadas (IDP, em inglês). As pessoas agora estão sendo encorajadas a deixar o acampamento e a voltar para suas regiões. Devemos nos perguntar por que tantas delas ainda preferem continuar a viver em condições desumanas, atrás de cercas de arame farpado. Eu fiz essa pergunta aos líderes comunitários que conheci antes de deixar o projeto. “Precisamos de três coisas para podermos voltar e recomeçar a nossa vida: paz, educação e saúde. E nenhuma delas existe lá fora”.
Eu voei de volta para Juba com essas palavras gravadas em minha mente. Eu também carregava todas essas cores fortes para ilustrar a imagem real de uma vida dura e injusta que vive o povo do Sudão do Sul, de volta aos representantes das autoridades que eu encontraria na capital. Uma imagem difícil que também foi confirmada pelos meus colegas coordenadores-gerais, de todos os nossos projetos em Malakal, Agok, Mayom, Yida, Aburoc, Fangak, Leer, Maban, Pieri, Lankien, Ulang, Mundri, Yambio, Yei, Pibor, Boma, Kediba e Aweil. Neste décimo aniversário da independência do país, não há nada para comemorar, mas muito sobre o que refletir e muito trabalho a ser feito.
Trabalhar para trazer a paz, para investir em educação e para construir capacidade para um sistema de saúde primário robusto e acessível.
MSF está aqui desde 1983 e é quase certo que ficaremos mais tempo. Embora continuemos procurando como preservar nossa identidade de emergência neste contexto, reconhecemos que todos estão esperando por nossa contribuição para esta capacitação. E podemos fazer isso: com uma boa vigilância para respostas mais rápidas a emergências, uma mudança operacional de hospitais secundários para serviços de saúde integrados e centrados na comunidade e a Academia de MSF – com treinamento para o desenvolvimento contínuo de auxiliares de enfermagem, que já é uma história de sucesso em muitos de nossos projetos por lá. Estes são alguns passos muito bons na direção certa. Mas cabe às autoridades e aos ministérios assumirem a liderança! Acho que deixei essa mensagem de forma clara quando me reuni com todos os embaixadores, ministros, vice-presidentes, agências da ONU e representantes dos países doadores neste último mês. Compartilhei exatamente as mesmas mensagens com os jornalistas e correspondentes da mídia internacional que conheci na sexta-feira antes de minha partida.
E no mesmo dia, publicamos o relatório “Sudão do Sul aos 10” – um registro e uma lembrança do custo humano da violência desde a independência, testemunhado por nossas equipes e pacientes.
Um relatório que MSF dedica aos 24 colegas que foram mortos no Sudão do Sul ao longo desses dez anos.
Um relatório que sempre me lembrará de toda a equipe incrível de MSF que conheci no Sudão do Sul e daqueles que li e sobre quem ouvi falar.”
Para ler o relatório, acesse aqui.
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