Testemunhos de quem foge dos bombardeamentos israelitas no Líbano

Estes testemunhos, recolhidos num abrigo improvisado com condições de habitabilidade terríveis, ilustram as dificuldades das famílias deslocadas em responder às necessidades mais básicas no Líbano

O abrigo Azarieh, outrora um movimentado centro comercial no coração de Beirute, foi transformado num refúgio para pessoas deslocadas pelos bombardeamentos israelitas em curso no Líbano. Acolhe mais de 2 500 pessoas e é um de aproximadamente 800 existentes  no país, segundo as autoridades nacionais. As condições são terríveis, uma vez que a instalação nunca foi concebida para habitação, dificultando ainda mais a vida às famílias abrigadas que, sem os recursos adequados, não conseguem responder a necessidades básicas.

Face a tudo isso, a Médicos Sem Fronteiras (MSF) estabeleceu uma unidade de saúde móvel no local, onde são prestados cuidados médicos primários e apoio psicológico, especialmente às crianças afetadas. Além disso, são distribuídos artigos vitais não-alimentares, como produtos de higiene, colchões e cobertores, para ajudar a melhorar as condições de vida das famílias em vulnerabilidade.

 

Imad Hachem

Deslocados guerra Líbano
Imad, de 55 anos, com uma expressão reflexiva. © Antoni Lallican/Hans Lucas, 2024.

Imad Hachem, de 55 anos, vivia com a mulher, a irmã, o filho e o primo nos subúrbios a Sul de Beirute, no Líbano. No rescaldo do ataque de 27 de Setembro que matou Hassan Nasrallah, antigo secretário-geral do Hezbollah, Imad percebeu que a segurança na zona estava prestes a desaparecer. A família decidiu abandonar os subúrbios e  levaram consigo tudo o que pudesse ser transportado, incluindo documentos de identificação.

 

Se a única forma de recuperar a estabilidade for partir, então partiremos. Mas onde e como, não faço ideia.”

– Imad

 

Embora tenham demorado alguns dias a encontrar colchões e cobertores, Imad explica que só conseguem sobreviver no abrigo de Azarieh graças à distribuição regular de alimentos. No entanto, as condições de vida não deixam de o preocupar, especialmente com a chegada iminente do inverno, da chuva e do frio.

Inquieta-o também a saúde do primo, que tem cancro e está há vários dias sem tratamento. “Recebíamos este tratamento caro do Ministério da Saúde, mas agora não sabemos como aceder a ele”, conta.

Imad visitou o bairro onde vivia alguns dias antes. Viu que a casa de família continuava de pé. Espera poder lá voltar um dia: “não quero sair do Líbano, mas tenho um filho e uma mulher para cuidar. Se a única forma de recuperar a estabilidade for partir, então partiremos. Mas onde e como, não faço ideia.”

 

Ezdihar al Diqar

Deslocados guerra Líbano MSF
Ezdihar al Diqa e a filha Nouraya, de 14 anos. © Antoni Lallican/Hans Lucas, 2024.

Natural de Baalbek, no Leste do Líbano, Ezdihar Al Diqar, 39 anos, vivia com o marido, a filha de 14 anos e o filho de 17 nos subúrbios a Sul de Beirute. Quando os primeiros bombardeamentos atingiram a cidade, a família decidiu inicialmente ficar, esperando que a situação voltasse em breve ao normal. Mas foi na noite de 28 de setembro, por volta das 22h30, enquanto jantavam à mesa, que receberam o alerta de um ataque iminente no bairro e decidiram fugir.

O marido de Ezdihar partiu para uma zona na província do Monte Líbano para cuidar da mãe. Ezdihar e os  dois filhos rumaram ao centro da capital. Sem saber onde procurar refúgio, passaram a primeira noite ao relento, antes de encontrarem o abrigo Azarieh. Passadas duas semanas, Ezdihar confessa que não se sente segura no espaço. “Ouvi uma forte explosão ontem, após um ataque israelita no centro de Beirute, a menos de 2 quilómetros daqui”, recorda.

Além disso, como mulher, Ezdihar sente que tem de tomar medidas de segurança adicionais: restringe os próprios movimentos e tranca a porta do pequeno espaço que a família partilha dentro do abrigo.

Determinada a enfrentar esses desafios de cabeça erguida, espera ao mesmo tempo que tudo volte ao normal. Como mãe, vê as consequências da guerra nos  filhos. “A minha filha tem apenas 14 anos, mas com todas as dificuldades que tivemos de ultrapassar, responde frequentemente a situações, nomeadamente ataques aéreos, com uma maturidade que ultrapassa a idade.”

 

Abbas

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Abbas, 28 anos, segura e beija o filho ao colo. © Antoni Lallican/Hans Lucas, 2024.

Viemos em busca de segurança no Líbano, mas aqui somos ainda mais vulneráveis.”

– Abbas

 

Natural da Síria, Abbas, 28 anos, veio para o Líbano em busca de segurança com a mulher e os pais. Em Beirute, encontrou trabalho como segurança, mas perdeu o emprego quando a guerra eclodiu.

Viviam também nos subúrbios Sul de Beirute e fugiram para escapar aos bombardeamentos. Depois de passarem várias noites a dormir na rua, mudaram-se para o abrigo Azarieh, onde partilham um quarto há 18 dias.

Abbas expressa muita preocupação com a saúde do filho de 8 meses, Amir. “O Amir está com febre e tem estado muito doente desde que aqui chegámos. Estamos a ficar sem leite e fraldas. Vai chorando cada vez mais, acho que está consciente desta mudança de ambiente e da insegurança em que vivemos, principalmente por causa do barulho dos bombardeamentos.”

Abbas explica que deixou a Síria à espera de uma vida melhor, mas agora sente-se encurralado: “Viemos em busca de segurança no Líbano, mas acontece que aqui somos ainda mais vulneráveis.” Na Síria, onde a situação económica não lhe permitiu encontrar trabalho, a casa da família foi destruída. Hoje, parece-lhe impossível regressar à terra natal.

 

Zeinab Ozeir

Deslocados guerra Líbano
Zeinab Ozeir, 29 anos, acalma o choro de Abbas, o filho de um ano e meio. © Antoni Lallican/Hans Lucas, 2024.

Zeinab, de 29 anos, deixou os subúrbios de Beirute com o marido e os filhos, um dia depois do ataque israelita de 27 de Setembro. A princípio, a família rumou para Norte, mas foi aconselhada a abandonar a região. Assim, por não se sentirem bem-vindos, decidiram regressar à capital para se instalarem no abrigo Azarieh, onde vivem num quarto de 10 metros quadrados com os 4 filhos: Helena, de 8 anos, Ahmad, de 7, Amir, de um ano e meio, e Abbas com apenas 2 meses.

Zeinab descreve a esmagadora sensação de incerteza que se apoderou dela desde que teve de deixar para trás os entes queridos e a sua casa: “Não consigo mais imaginar o futuro aqui. Mesmo que a guerra acabe, o que restará da nossa casa? Será que a minha família e os meus amigos sobreviverão?”

Embora tenha enfrentado a guerra de 2006, descreve a atual situação com muito mais preocupação. O impacto da guerra nos filhos é algo que a afeta profundamente. Tinha acabado de matricular Helena e Ahmad na escola, mas depois a guerra começou. As crianças perguntam quando poderão voltar a estudar.

Acima de tudo, a guerra colocou uma forte pressão sobre a saúde psicológica de toda a família. Zeinab descreve as noites cheias de pesadelos e o despertar constante ao mais pequeno ruído. Quando uma bomba israelita atingiu um edifício a dois quilómetros do abrigo, no dia anterior, os filhos pediram para se mudarem para um local mais seguro. Zeinab também gostaria de ir embora.

O casal pensa em deixar o Líbano, seja qual for o destino, desde que os filhos estejam em segurança e possam esperar um futuro de paz.

 

Veja também as fotos do abrigo, onde estão abrigadas estas quatro famílias:

 

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