Uma visita de dois dias para prestar apoio numa vila rural ucraniana

Uma equipa de 14 profissionais da MSF, incluindo médicos, psicólogos, tradutores, especialistas em logística e condutores visitam a vila de Holovanivsk

Equipa da MSF presta apoio numa vila rural na Ucrânia.
©Igor G. Barbero/MSF

Ao contrário de algumas emergências humanitárias, em que o sistema de saúde local colapsa ou se torna difícil dar resposta às necessidades das pessoas, na Ucrânia os hospitais e organizações da sociedade civil continuam a funcionar com uma guerra em curso no país. Já que a prestação direta de cuidados médicos está largamente garantida, as equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF) concentram-se em construir uma rede de apoio a hospitais e a profissionais de primeira resposta, sobretudo através de formações e doações.

Aqui é partilhado um olhar sobre os dois dias de visita da MSF para prestar apoio numa vila rural no centro da Ucrânia.

 

PRIMEIRO DIA

Uma equipa móvel a caminho

São 7h30 da manhã e está um ambiente agitado na receção do hotel em Kropivnitskii, uma cidade no centro da Ucrânia, a 150 quilómetros da frente de combate mais próxima, onde a MSF estabeleceu uma pequena base em abril. As pessoas carregam alguns materiais médicos e logísticos em três carros e o coordenador de projeto dá aos membros da equipa móvel as instruções finais sobre a situação e as atividades planeadas, enquanto se preparam para sair.

São 14 pessoas, incluindo médicos, psicólogos, tradutores, especialistas em logística e condutores, e dirigem-se para Holovanivsk, uma pequena vila a duas horas e meia de distância, com 16 500 habitantes. A caravana passa por vastos campos de cultivo, quase desertos, de soja, milho, trigo e girassóis. As plantações ainda não brotaram, mas o azul do céu nublado e o amarelo das flores de soja juntam-se e pintam na paisagem uma bandeira ucraniana.

Campos de trigo e flores de soja no centro da Ucrânia.
Campos de trigo e flores de soja no centro da Ucrânia. ©Igor G. Barbero/MSF

Divisão de grupos por tarefas

Às 11h00, a equipa da MSF chega a Holovanivsk, onde estão registadas mais de mil pessoas deslocadas pela guerra – vivem dispersas, a maioria em aldeias nos arredores.

A equipa divide-se em quatro grupos. Olexander e Juan Pablo, médicos oriundos da cidade de Mariupol e da Argentina, respetivamente, dirigem-se ao hospital local e ao centro de ambulâncias. Em cada um destes locais, realizarão sessões de formação sobre incidentes com vítimas em larga escala e descontaminação; por outra palavras, sobre como fazer triagem em situações de elevado fluxo de pacientes feridos e como proceder em caso de ataques com armas não convencionais.

Duas psicólogas ucranianas, Olga e Alissa, vão aferir o estado das pessoas nas comunidades de deslocados, e gostariam de fornecer consultas individuais de saúde mental e tentar formar um grupo de psicoterapia. A guerra está a ter um forte impacto psicológico e muitas pessoas têm sintomas como medo intenso, stress constante, preocupações persistentes, desesperança e ataques de pânico.

A parteira, Florencia, da Argentina, e a coordenadora de atividades de saúde mental, Ariadna, do México, acompanhadas pela tradutora Olga, dirigem-se a uma escola para iniciar um seminário sobre violência sexual e com base no género. Ao mesmo tempo, o especialista em logística Tanain, do Brasil, e outros membros da equipa MSF visitam o centro humanitário para doarem artigos essenciais.

Atender as necessidades de pessoas deslocadas

Olena aguarda-os. Em tempos foi professora de química e biologia, e ocupa agora o cargo de secretária da junta da vila.

“Nos primeiros dias de guerra, chegavam aqui 150 a 180 pessoas todos os dias”, conta Olena. “A maior parte durante a noite. Muitas a deslocarem-se para outros sítios. Foi horrível… ninguém estava preparado, pelo que nos organizámos por tarefas: cozinhar, limpar… todos trouxeram coisas. Como as mulheres com bebés pequenos não podiam ficar nos centros sociais, alguns residentes ofereciam-lhes as suas casas. Havia muita solidariedade, nunca tinha visto nada assim.”

O filho de Olena vivia em Kiev, mas mudou-se para Holovanivsk pouco depois da guerra eclodir.

Tanain, especialista em logística da MSF, e a tradutora Nathalia conversam com Olena, secretária da junta de Holovanivsk, no centro da Ucrânia, durante uma doação de artigos para pessoas que estão deslocadas internamente.
Tanain, especialista em logística da MSF, e a tradutora Nathalia conversam com Olena, secretária da junta de Holovanivsk, no centro da Ucrânia, durante uma doação de artigos para pessoas que estão deslocadas internamente. 26 maio 2022 © Igor G. Barbero/MSF

 

“É muito importante conseguirmos agora assistência humanitária”, sublinha Olena. “Podemos para já pedir comida aos agricultores, mas outras coisas, como produtos de higiene, também ajudam… as pessoas estão a ficar sem dinheiro, já gastaram muito.”

Uma equipa da MSF tinha estado em Holovanivsk duas semanas antes, e as autoridades locais já tinham identificado as necessidades principais: cobertores, toalhas, lençóis, lanternas solares e fronhas de almofadas.

Vitimação e barreiras para sobreviventes de violência sexual

Não muito longe dali, cerca de 35 profissionais de saúde, assistentes sociais, professoras e psicólogas, todas mulheres, participam na formação sobre violência sexual e de género. As dinamizadoras falam do sentimento de vitimação que algumas mulheres podem sentir após uma gravidez resultante de violação, ou sobre as barreiras que sobreviventes do sexo masculino enfrentam.

“Não interessa o que tenham vestido”, frisa a parteira Florencia durante a sessão ao grupo. “Não têm nenhum sinal para serem violadas. A culpa é sempre do perpetrador.”

“As formações são muito úteis e informativas”, explica Olga, psicóloga na escola. “São muito importantes nesta altura, porque encontramos frequentemente casos de violência. Temos exemplos de Lugansk, Donetsk, da região de Kiev, de Bucha… queremos que estes casos sejam conhecidos pelo máximo de pessoas.”

A parteira da MSF Florencia conversa com a audiência durante uma formação sobre violência sexual e com base no género, para psicólogas, profissionais de saúde e de primeira resposta, numa escola em Holovanivsk.
A parteira da MSF Florencia conversa com a audiência durante uma formação sobre violência sexual e com base no género, para psicólogas, profissionais de saúde e de primeira resposta, numa escola em Holovanivsk. 26 maio 2022 ©Igor G. Barbero/MSF

 

SEGUNDO DIA

Compreender os desafios burocráticos que sobreviventes enfrentam

No dia seguinte, o grupo começa com um jogo de interpretação de papéis. Cada participante tem um papel diferente: polícia, médico e psicólogo. A mulher que faz de sobrevivente segura um fio e vai de pessoa em pessoa à procura de assistência.

Ao fazer isto, cria uma teia complexa com o fio, que representa os entraves burocráticos que sobreviventes enfrentam na realidade. A solução? Criar um caminho mais simples com todos os serviços, incluindo o tratamento médico e a assistência psicológica – algo em que a MSF está a tentar apoiar as autoridades a estabelecerem em algumas partes do país.

“O nosso objetivo é sensibilizar estes profissionais de primeira resposta de forma a aumentar o número de pessoas que pode obter os serviços”, explica Florencia. “Mas isto está a revelar-se dificil.”

A coordenadora de atividades de saúde mental, Ariadna Peréz, com as participantes durante a formação sobre violência sexual e de género, para psicólogas, profissionais de saúde e de primeira resposta numa escola em Holovanivsk. As participantes criam uma teia com um fio para simular os entraves burocráticos que sobreviventes de violência sexual enfrentam para obter ajuda.
A coordenadora de atividades de saúde mental, Ariadna Peréz, com as participantes durante a formação sobre violência sexual e de género, para psicólogas, profissionais de saúde e de primeira resposta numa escola em Holovanivsk. As participantes criam uma teia com um fio para simular os entraves burocráticos que sobreviventes de violência sexual enfrentam para obter ajuda. 27 maio 2022 ©Igor G. Barbero/MSF

 

A violência colocou as pessoas em situações de vulnerabilidade

Noutra sala da escola, os psicológos da MSF realizam sessões de apoio psicológico com adultos e crianças deslocadas pelo conflito. Marina e Olena são da região de Donetsk e chegaram ali há um e dois meses, respetivamente. Vivem com outra mulher numa casa que estava vazia, numa aldeia perto de Holovanivsk; todas têm filhos entre os 6 e os 12 anos.

“Uns funcionários administrativos disseram a um familiar que vive aqui [em Holovanivsk] que podíamos ficar onde estamos agora”, conta Olena. “Inicialmente, quando chegámos, temíamos como as pessoas iriam reagir. Não queríamos que sentissem pena de nós. Mas a atitude delas foi muito boa, as pessoas têm sido muito calorosas.”

Ambas são empresárias. Antes da guerra, Marina tinha um salão de beleza e Olena trabalhava na sua pequena loja. Agora ajudam a preparar comida numa cozinha local e a cultivar vegetais.

[Foto 1] Olena (à esquerda) e Marina são deslocadas internas da região de Donetsk, no Leste da Ucrânia. Estão alojadas com os filhos numa casa perto da vila de Holovanivsk, no centro do país. [Foto 2] Sandra, (à esquerda) e a mãe, Marina, são de Kharkiv, no Nordeste da Ucrânia. Desde o início de março, após a guerra eclodir, têm estado a viver numa aldeia perto de Holovanivsk. 27 maio 2022 ©Igor G. Barbero/MSF

Sandra também partilha a sua experiência sobre os efeitos da guerra. Está no último ano do bacharelato em Gestão Internacional e vem de Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia.

“Sinto-me bem, no geral”, nota. “Estou viva, e o meu marido e os meus pais estão comigo. Casámo-nos aqui há um mês. Mas não consigo ler as notícias, porque num minuto fico frustrada e começo a chorar… Ainda não consigo acreditar que isto está a acontecer.”

Sandra tenta o seu melhor para se manter ocupada, quer seja a desenhar ou a escrever poemas. Conta que alguns amigos decidiram ficar em Kharkiv apesar da situação ser extremamente difícil – uma amiga que tem uma filha pequena está agora a viver numa casa parcialmente destruída.

“Não sinto falta dos bens materiais”, explica. “Mas tenho saudades da minha cidade, das árvores, dos edifícios. Gostava simplesmente de poder voltar para casa.”

Mas depois lembra-se por que razão fugiram.

“Foi muito stressante. Não estava a conseguir lidar com a situação. Sentia náuseas só de olhar para a comida. Nos primeiros dias refugiávamo-nos constantemente no abrigo. Depois, quando as bombas começaram a cair, íamos para a casa de banho e cobríamos as cabeças com almofadas e mantas. Sentávamo-nos de cócoras e rezávamos enquanto jatos militares sobrevoavam o edifício. O som das bombas era sempre tão forte que parecia que nos estavam a atingir.”

Estado de prontidão no hospital

No hospital, a equipa médica da MSF conclui as formações; Ianina e Oleksii sentam-se novamente no seu gabinete no departamento pediátrico vestidos com batas brancas. Estudaram medicina juntos. Ela é de Zaporíjjia, ele de Melitopol, no Sudeste do país, e mudaram-se os dois para Holovanivsk há dois anos.

Da esquerda para a direita, os médicos Oleksii, Ianina e Iurii. Trabalham no hospital de Holovanivsk, onde uma equipa da MSF prestou formações.
Da esquerda para a direita, os médicos Oleksii, Ianina e Iurii. Trabalham no hospital de Holovanivsk, onde uma equipa da MSF prestou formações. 27 maio 2022 ©Igor G. Barbero/MSF

 

“Temos tido menos pacientes desde 24 de fevereiro [quando a guerra começou]”, observa Ianina. “Mas chegam em estado mais grave. Muitas pessoas da região fugiram da Ucrânia, e os deslocados não sabem ao certo o que fazemos.”

A parede está repleta de desenhos feitos por crianças que ali receberam apoio médico. Nas folhas de papel expõem as suas experiências com problemas de saúde: um gato, por exemplo, foi desenhado por uma rapariga com asma.

“Durante o primeiro mês de guerra trabalhávamos à noite”, relata Ianina. “E a equipa cirúrgica estava sempre a postos, 24 horas por dia. Quando as sirenes tocavam íamos para o abrigo com os pacientes. Agora ficamos numa área segura do corredor. Nos últimos meses, recebemos assistência humanitária. As formações são importantes nas áreas rurais para os profissionais desenvolverem conhecimento, a não entrarem em pânico e saberem como agir passo a passo. Já atendemos crianças oriundas de territórios ocupados, como um rapaz de Mariupol, que desenvolveu rinite alérgica [inflamação da mucosa nasal] por ter estado um mês num abrigo, e não estava bem psicologicamente.”

A situação também não é fácil para os médicos. Contactam a família todos os dias para saberem se estão bem.

“Tento evitar pensar demasiado, o mais fácil é simplesmente trabalhar”, confessa Oleksii. “Ainda tenho muitos familiares em Melitopol. Os meus pais vivem perto de um aeroporto militar e ouvem constantemente aviões de guerra. E as pessoas que tentam sair de Melitopol para outras regiões da Ucrânia passam dias em cada posto de controlo.”

Durante a conversa, o alerta de sirenes soa nos telemóveis de todos. É a terceira vez neste dia; as outras duas tinham sido durante a noite. Na vila, os membros da equipa da MSF reagrupam-se. Almoçam, acabam o trabalho e entram nos três carros para regressar a Kropivnitskii. A visita de dois dias para prestar apoio às pessoas de Holovanivsk terminou.

 

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