Vidas em risco: seca e lacunas no financiamento agravam crise de desnutrição na Somália

A MSF insta urgentemente doadores e organizações humanitárias a agirem de imediato para evitar um sofrimento generalizado e a perda de mais vidas

Somália Desnutrição - Pulseira MUAC
© Bishar Mayow/MSF

A Somália enfrenta uma crise de desnutrição grave, exacerbada por secas prolongadas, conflitos contínuos, instabilidade económica e um sistema de saúde frágil. As regiões de Baidoa e de Mudug, onde a Médicos Sem Fronteiras (MSF) trabalha, são exemplos do desenrolar desta emergência humanitária em todo o país, com milhares de crianças em risco iminente de desnutrição grave e de consequências potencialmente fatais.

Os défices crónicos no financiamento têm comprometido os esforços humanitários, forçando a redução de escala ou mesmo o encerramento de programas essenciais de nutrição. A ameaça iminente de uma seca provocada pelo fenómeno La Niña em 2025 poderá empurrar uma população já em situação de vulnerabilidade para o limite. A MSF insta urgentemente doadores e as organizações humanitárias a agirem de imediato, de forma a evitar um sofrimento generalizado, pois as consequências poderão ser catastróficas.

 

A última esperança de um pai para salvar os filhos

Somália Desnutrição Infantil
Suado Hassan Mohamed, 22 anos, com o filho, Abdirahman Abdilatif, ao colo no Hospital Regional de Bay. © Mohamed Ali Adan/MSF, junho 2024

Kalimow Mohamed Nur não teve alternativa senão arriscar tudo. Com os filhos gémeos enfraquecidos pela fome, os corpos frágeis devido a episódios recorrentes de vómitos e diarreia, contraiu uma dívida equivalente a meses de rendimento apenas para pagar a deslocação por um dia até Baidoa. O percurso foi longo, o calor implacável, mas a perspetiva de obter cuidados médicos gratuitos no Hospital Regional de Bay era a última esperança.

“Tive de pedir um empréstimo de cerca de 130 dólares [perto de 120 euros] e viajar 300 quilómetros até Baidoa para conseguir cuidados médicos gratuitos”, explica Kalimow, cujos filhos receberam tratamento para desnutrição aguda grave no Hospital Regional de Bay, apoiado pela MSF. “Eles eram tão pequenos, e mal conseguíamos comprar comida suficiente. Estavam sempre a adoecer.”

A história de Kalimow Mohamed Nur, marcada pela pobreza, pela distância e pela falta de serviços locais, reflete a dura realidade que impede inúmeras famílias de acederem a cuidados de saúde. Na Somália, o tratamento que pode salvar vidas transformou-se num privilégio acessível apenas para alguns.

 

Desnutrição tornou-se uma crise contínua na Somália

Em Baidoa e Mudug, a desnutrição não é apenas um desafio sazonal, mas sim uma crise persistente ao longo de todo o ano. “Estamos a assistir a taxas de desnutrição elevadas, não só durante as habituais épocas de escassez”, frisa a coordenadora médica da MSF na Somália, Jarmilla Kliescikova. “Esta é uma crise crónica que exige uma resposta sustentada.”

Em 2024, as equipas da MSF trataram 18.066 crianças com desnutrição aguda grave nos projetos que desenvolve na Somália, um aumento significativo em relação ao ano anterior. Em Mudug, as admissões de pacientes nos programas de nutrição em regime ambulatório aumentaram 250 por cento, impulsionadas tanto pelo crescimento das necessidades como pela expansão das atividades de alcance comunitário. Em Baidoa também se registou um aumento contínuo nas admissões ao longo de 2024, evidenciando o desespero cada vez maior das famílias à procura de cuidados.

 

Estamos a assistir a taxas de desnutrição elevadas, não só durante as habituais épocas de escassez”

– Jarmilla Kliescikova, coordenadora médica da MSF na Somália

 

No entanto, estes esforços mal conseguem fazer frente à dimensão do problema. De acordo com o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, na sigla em inglês), estimava-se que 1,7 milhão de crianças sofressem de desnutrição aguda em 2024, incluindo 430 mil com desnutrição aguda grave. As operações da MSF, embora essenciais, alcançaram apenas cerca de um por cento da população total afetada por desnutrição, o que demonstra a vasta dimensão desta crise e a necessidade urgente de um apoio mais amplo.

Os conflitos e as alterações climáticas impulsionaram deslocações populacionais maciças, forçando as pessoas a refugiarem-se em áreas onde os recursos já eram escassos. Secas sucessivas devastaram a agricultura, deixando as famílias que dependiam da produção agrícola e do gado sem meios de subsistência. Nos locais onde as pessoas deslocadas se instalaram, a prevalência da desnutrição grave e moderada é alarmantemente elevada, enquanto os centros de saúde sobrecarregados se debatem para responder às necessidades.

 

A falta de financiamento está a forçar a redução de programas essenciais

Além disso, os cortes no financiamento desferiram um golpe devastador na resposta humanitária. Segundo o OCHA, apenas 56 por cento das necessidades de financiamento humanitário da Somália foram cobertos em 2022, percentagem essa que caiu ainda mais, para apenas 40 por cento, em 2024.

Em Baidoa, por exemplo, vários programas de nutrição foram reduzidos desde 2023 e, em ambas as regiões, serviços essenciais como centros de alimentação terapêutica e cuidados de saúde primários estão a ser diminuídos ou encerrados.

Pesagem de uma criança com 26 meses num centro da MSF em Baidoa. © Bishar Mayow/MSF, julho 2024

“O fecho destes programas deixou uma lacuna devastadora”, conta o responsável pelos programas da MSF na Somália, Mohammed Ali Omer. “Crianças em necessidade desesperada de alimentos terapêuticos estão a ser recusadas. Além disso, apenas algumas comunidades beneficiam de vacinação, deixando muitas crianças suscetíveis a doenças evitáveis, o que perpetua o ciclo vicioso da desnutrição. Isto não é apenas uma crise – é uma catástrofe a desenrolar-se em tempo real.

Enquanto a Somália enfrenta períodos contínuos de seca, um perigo ainda maior aproxima-se: uma seca induzida pelo fenómeno La Niña, prevista para 2025. La Niña é um fenómeno climático que arrefece as temperaturas da superfície oceânica e perturba os padrões meteorológicos globais, frequentemente resultando na redução da precipitação na África Oriental. Com os recursos hídricos esgotados e a produção alimentar fragilizada pelas secas anteriores, o impacto poderá ser catastrófico, levando mais famílias a abandonarem as casas e agravando ainda mais as taxas de desnutrição. Uma vez que as secas se tornam mais frequentes e graves, a margem para a recuperação diminui, e, ao mesmo tempo, o aumento dos preços dos alimentos torna a sobrevivência ainda mais difícil para as pessoas em situação de vulnerabilidade.

 

Uma crise iminente que o mundo ainda pode prevenir

Sem um apoio imediato e sustentado, milhares de crianças enfrentam não só fome, mas também uma imunidade enfraquecida, maior suscetibilidade a doenças e danos irreversíveis no desenvolvimento. O sistema de saúde, já em sobrecarga face à procura incessante, corre o risco de colapsar completamente à medida que os surtos de doenças e complicações aumentarem.

A MSF urge os doadores e governos a tomarem medidas prontamente, antes que a seca de 2025 se concretize. É essencial reforçar o tratamento nutricional, expandir a distribuição de alimentos e fortalecer os serviços de saúde para salvar vidas enquanto ainda há tempo.

“A assistência humanitária na Somália já é perigosamente escassa e, agora, com relatos de mais cortes no financiamento – incluindo reduções no apoio dos EUA –, a situação irá piorar, irá colocar mais vidas em risco”, alerta Mohammed Ali Omer. “Os cortes nos programas de nutrição estão a acontecer no pior momento possível. As taxas de desnutrição estão a disparar, o número de deslocados está a aumentar e a necessidade de ajuda nunca foi tão grande. Reduzir o apoio neste momento não é apenas irresponsável – é também fatal. O momento de agir é agora. Para as crianças de Baidoa e de Mudug, cada segundo conta para lhes dar uma hipótese de sobreviver”, sustenta o responsável pelos programas da MSF na Somália.

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