Violência em Cabo Delgado continua a deslocar e a traumatizar milhares de famílias

Em janeiro de 2024, encontravam-se em Macomia cerca de 76 000 pessoas que tinham sido deslocadas nos últimos anos; em fevereiro, cerca de 3 600 pessoas adicionais foram deslocadas na sequência de múltiplos ataques no distrito

© Martim Gray Pereira/MSF

Seis anos após o início do violento conflito no Norte de Moçambique, as pessoas em Cabo Delgado ainda vivem com medo. Só em 2024, mais de 80 mil pessoas tiveram de fugir na sequência de ataques de grupos armados. As famílias deslocadas necessitam urgentemente de alimentos, abrigos, bens de primeira necessidade e cuidados de saúde e de saúde mental.

“As pessoas deslocadas ficam muitas vezes altamente traumatizadas pela violência”, explica a psicóloga da Médicos Sem Fronteiras (MSF) Esperança Chinhanja, em Macomia, um dos distritos afetados de Cabo Delgado. “Algumas pessoas sentem ansiedade, têm ataques de pânico, pensamentos recorrentes, insónias, e tendem a ter comportamentos de isolamento. Alguns contam que perderam o sentido da vida e mencionam pensamentos suicidas.”

Desde 2017, famílias foram deslocadas diversas vezes. A maioria sofreu ou testemunhou violência extrema, incluindo assassinatos, violência sexual, sequestros, extorsão e viram as aldeias queimadas. Muitas pessoas tiveram ou viram a familia e/ou vizinhos serem assassinados, decapitados ou baleados. Algumas perderam toda a família.

A violência não diminuiu e as pessoas continuam a fugir repetidamente. Em janeiro de 2024, encontravam-se em Macomia cerca de 76 000 pessoas que tinham sido deslocadas nos últimos anos. Em fevereiro, cerca de 3 600 pessoas adicionais foram deslocadas na sequência de múltiplos ataques no distrito. As histórias que contam são angustiantes.

Joaquim*, de 42 anos, está deslocado desde 2022, e é agora responsável pelo registo de novas pessoas que chegam a um acampamento para famílias deslocadas em Macomia. Ele regista os nomes de todos os recém-chegados e traz consigo as suas histórias, experiências, necessidades e frustrações. “À noite, muitas pessoas não conseguem dormir porque ainda têm medo. Muitos preferem ficar acordados para garantir que está tudo bem e que nada de mal possa acontecer”, partilha Joaquim, ao mesmo tempo que sublinha que a alimentação é a necessidade mais urgente das famílias deslocadas.

Amade*, um agricultor de 60 anos, foi forçado a fugir da aldeia onde vivia em Pangane em fevereiro. Atualmente encontra-se num acampamento em Macomia Sede, a cerca de 45 quilómetros da sua aldeia. Ao visitar uma clínica da MSF, Amade contou: “Quando ouvimos os tiros a ser disparados, começámos a correr. Esta foi a quarta vez que fugimos de ataques na minha aldeia desde 2020. Não temos comida e dependemos da generosidade de outras pessoas para comer. Perdi tanto peso que nem reconheço meu corpo – as minhas calças caem-me pelas pernas porque deixaram de me servir. À noite não consigo dormir entre estar com fome e assombrado pelas memórias dos ataques.”

Tal como Amade, Ernestina Jeremias, uma matrona de 32 anos, também foi deslocada em fevereiro de Chai e encontra-se atualmente em Macomia Sede, a cerca de 40 quilómetros da sua aldeia. “Os ataques destruíram tudo o que tínhamos, incluindo as nossas vidas. Esta é a terceira vez que fujo de Chai. Os últimos ataques foram os mais brutais porque aconteceram repetidamente durante duas semanas. Estou num centro de deslocados desde que cheguei a Macomia. Aqui, estou a dar apoio às mulheres grávidas da minha comunidade que também fugiram dos ataques, e encaminho os casos mais graves para as clínicas da MSF. Isso é o que me faz continuar em frente”, conta.

Atija, de 28 anos, que acompanhou os dois filhos à clínica da MSF em Nanga, também partilhou a sua história: “Eu estava grávida quando a nossa aldeia foi atacada no distrito de Meluco em 2022. Vi a minha casa a ser queimada, perdemos tudo o que tínhamos nesse dia. A minha família e eu fugimos para o mato e caminhámos durante dois dias. Desde então, nunca mais fui a mesma e ainda tenho ataques de pânico, insónias e quero ficar sozinha a maior parte do tempo. É nos meus filhos que encontro forças para continuar a viver. Tenho de assegurar que temos comida. Estou a trabalhar nas machambas [campos agricolas] de outras pessoas e em troca dão-me mandioca seca.”

O conflito continua a ter um impacto significativo nos serviços públicos, particularmente com a destruição de instalações de saúde, causando graves constrangimentos no acesso a cuidados de saúde básicos. Em Macomia, dos sete centros de saúde existentes geridos pelo Ministério da Saúde antes do conflito, apenas um está a funcionar. A MSF está a apoiar três clínicas em Macomia Sede e presta assistência médica a famílias que foram deslocadas tanto nos últimos anos como as que continuam a ser deslocadas recentemente.

A situação de segurança continua volátil em Cabo Delgado e é prematuro falar em estabilização e no regresso da vida à normalidade. Em dezembro de 2023, mais de 540 mil pessoas permaneciam deslocadas, enquanto 600 mil regressaram às aldeias onde antes viviam. Em diversas ocasiões, as famílias que voltam às áreas de origem ainda vivem com medo devido aos traumas pelos quais passaram e pelo risco de serem novamente deslocadas por novos ataques.

A MSF trabalha em Cabo Delgado desde 2019. Atualmente, a organização médica-humanitária trabalha nos distritos de Macomia, Mocímboa da Praia, Mueda, Muidumbe, Nangade e Palma, onde presta assistência médica e humanitária de forma independente, imparcial e neutra, tanto a comunidades deslocadas como às comunidades que regressam às zonas de origem. Em 2023, as equipas de saúde mental da MSF alcançaram mais de 85 mil pessoas em atividades de grupo e cinco mil sessões individuais em Cabo Delgado.

* nomes alterados para proteger a identidade

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