Violência sexual no Sudão: “Espancaram-nos e violaram-nos ali mesmo, na estrada, em público”

Mulheres e raparigas na região do Darfur, no Sudão, vivem sob risco constante de violência sexual, alerta a MSF

Guerra no Sudão - violência sexual
© Thibault Fendler/MSF

A verdadeira dimensão desta crise permanece difícil de quantificar. Afinal de contas, os serviços são escassos, as barreiras para aceder a tratamento são significativas e a partilha de experiências enfrentadas não é comum.

No entanto, todas as sobreviventes que falam com as equipas da Médicos sem Fronteiras (MSF) no Darfur e no outro lado da fronteira, no Chade, relatam histórias horripilantes de violência e violação brutais. Homens e rapazes também estão em risco, e a extensão do sofrimento é indescritível.

“As mulheres e raparigas não se sentem seguras em lado nenhum. São atacadas nas próprias casas, quando fogem da violência, quando vão buscar comida, apanhar lenha ou trabalhar nos campos. Dizem-nos que se sentem encurraladas”, avança a coordenadora de emergências da MSF, Claire San Filippo.

A violência sexual não é uma consequência natural ou inevitável da guerra – pode constituir um crime de guerra, uma forma de tortura e um crime contra a humanidade. As partes em conflito devem responsabilizar os combatentes e proteger as pessoas desta violência repugnante. Os serviços de apoio às sobreviventes devem ser urgentemente reforçados, para que tenham acesso ao tratamento médico e ao apoio psicológico de que desesperadamente precisam”, frisa San Filippo.

 

A violência sexual não é uma consequência natural ou inevitável da guerra.”

– Claire San Filippo, coordenadora de emergências da MSF

 

A violência sexual tornou-se tão generalizada no Darfur que muitas pessoas falam dela com uma frieza assustadora, como se fosse algo inevitável. “Algumas pessoas vinham à noite para violar as mulheres e levar tudo, até os animais. Ouvi mulheres a serem violadas durante a noite. Os homens escondiam-se nas casas de banho ou em quartos com portas que podiam trancar, como o meu marido e os meus irmãos — caso contrário, seriam mortos. As mulheres não se escondiam porque, para nós, eram só agressões e violações. Para os homens, era a morte,” contou uma mulher de 27 anos à equipa da MSF em Darfur Ocidental.

A violência sexual não ocorre apenas durante ataques a aldeias ou durante fugas. A ajuda humanitária limitada obriga muitas pessoas a correr riscos para sobreviver: caminham longas distâncias para satisfazer necessidades básicas ou, então, têm de trabalhar em locais perigosos. Outras optam por não arriscar, mas acabam cortadas de fontes de rendimento, o que limita ainda mais o acesso a água, comida e cuidados de saúde. Nem isso lhes garante a segurança, pois há sobreviventes que também são atacadas em casa.

Entre janeiro de 2024 e março de 2025, a MSF prestou cuidados a 659 sobreviventes de violência sexual no Darfur do Sul:

  • 86 por cento relataram ter sido violadas;
  • 94 por cento das sobreviventes eram mulheres e raparigas;
  • 56% afirmaram ter sido agredidas por indivíduos armados (militares, polícias ou grupos armados não estatais);
  • 55% relataram ter sofrido violência física adicional durante a agressão;
  • 34% foram agredidas sexualmente enquanto trabalhavam em campos ou se deslocavam para lá;
  • 31% tinham menos de 18 anos, 29% eram adolescentes (dos 10 aos 19 anos), 7% tinham menos de 10 anos e 2,6% tinham menos de 5 anos.

Estes dados alarmantes são provavelmente uma subestimativa da verdadeira escala da violência sexual no Darfur do Sul.

A situação é semelhante noutras zonas onde a MSF consegue prestar assistência, como no Leste do Chade, que acolhe atualmente mais de 800 000 refugiados sudaneses. Em Adré, quase metade dos 44 sobreviventes tratados pela MSF desde janeiro de 2025 eram crianças. Na província de Wadi Fira, 94 sobreviventes receberam tratamento entre janeiro e março de 2025, incluindo 81 com menos de 18 anos. Os testemunhos de pacientes e cuidadores tanto no Leste do Chade como no Darfur confirmam esta realidade.

Um homem contou à equipa da MSF em Murnei, Darfur Ocidental: “Há três meses, uma menina de 13 anos foi violada por três homens… apanharam-na, violaram-na e depois deixaram-na num vale… Chamaram algumas pessoas para a levar ao hospital. Eu fui uma delas. Era uma menina!” Muitas sobreviventes relatam ter sido violadas por vários agressores ao mesmo tempo. Em Metché, no Leste do Chade, 11 de 24 sobreviventes tratadas entre janeiro e março de 2025 relataram ter sido atacadas por múltiplos homens.

Os testemunhos recolhidos em diferentes locais confirmam este padrão. “Quando chegámos a Kulbus, vimos um grupo de três mulheres vigiadas por homens das RSF [Forças de Apoio Rápido]. Fomos obrigados a juntar-nos a eles. Disseram-nos: ‘Vocês são mulheres ou filhas dos soldados do exército sudanês.’ Depois bateram-nos e violaram-nos ali mesmo, na estrada, em público. Eram nove homens das RSF. Sete deles violaram-me. Quis perder a memória depois disso”, relatou uma sobrevivente de 17 anos à MSF.

Noutros casos, os agressores acusam diretamente as vítimas de apoiar o “inimigo”. Uma mulher partilhou: “Tenho um certificado de primeiros-socorros. [Quando nos abordaram], os homens das RSF pediram-me a mala. Quando viram o certificado, disseram: ‘Queres tratar os soldados do exército sudanês, queres curar o inimigo!’ Depois queimaram o meu certificado e levaram-me para me violarem. Disseram aos outros para se deitarem no chão. Eu estava com outras mulheres, incluindo a minha irmã. Só me violaram a mim, por causa do certificado.”

É fundamental que as sobreviventes tenham acesso a serviços após o ataque, pois a violência sexual é uma emergência médica. As consequências físicas e psicológicas imediatas e a longo prazo podem ser fatais. No entanto, as sobreviventes enfrentam enormes obstáculos: falta de serviços ou pouco conhecimento dos que existem, altos custos de transporte e relutância em denunciar os abusos devido à vergonha, ao medo do estigma ou de represálias.

“Não posso dizer nada à comunidade, seria uma vergonha para a minha família. Por isso, nunca contei o que me aconteceu, até hoje. Só estou a pedir ajuda médica agora. Tinha demasiado medo de ir ao hospital. A minha família disse-me: ‘Não digas a ninguém’,” contou uma mulher de 27 anos à MSF no Leste do Chade.

 

Não posso dizer nada à comunidade, seria uma vergonha para a minha família. Por isso, nunca contei o que me aconteceu, até hoje.”

– Sobrevivente de 27 anos

 

Onde há serviços, é essencial que existam vias de encaminhamento claras e acessíveis para que as sobreviventes recebam a ajuda necessária. No final de 2024, no Darfur do Sul — o estado com maior número de deslocados internos no Sudão — a MSF acrescentou uma componente comunitária ao apoio            que presta a sobreviventes de violência sexual. Parteiras e profissionais comunitários de saúde foram capacitados e equipados para fornecer contracepção de emergência e primeiros socorros psicológicos às sobreviventes. Também ajudaram no encaminhamento para clínicas de cuidados primários e hospitais secundários apoiados pela MSF. Desde a implementação deste modelo comunitário, a MSF registou um aumento acentuado no número de mulheres e adolescentes a procurar cuidados.

As equipas da MSF continuam a receber novos casos. Em Tawila, onde continuam a chegar pessoas após os ataques ao campo de Zamzam e a El Fasher (Darfur do Norte), o hospital local recebeu 48 sobreviventes de violência sexual entre janeiro e o início de maio, a maioria após o início dos combates no campo de Zamzam em abril.

“O acesso a serviços para sobreviventes de violência sexual é insuficiente e, tal como a maioria dos serviços humanitários e de saúde no Sudão, deve ser urgentemente reforçado. As pessoas — sobretudo mulheres e raparigas — que enfrentam violência sexual precisam com urgência de cuidados médicos, apoio psicológico e proteção. O apoio prestado tem de ser concebido desde o início para superar as inúmeras barreiras esmagadoras que as sobreviventes enfrentam ao procurar ajuda após sofrerem violência sexual”, afirma  a gestora médica de emergências da MSF, Ruth Kauffman.

Os ataques brutais e as violações têm de parar. As partes em conflito devem proteger os civis, respeitando as suas obrigações ao abrigo do Direito Internacional Humanitário. Os serviços médicos e humanitários para sobreviventes de violência sexual devem ser urgentemente reforçados no Darfur e no Leste do Chade.

 

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