47° de sol e saudade: a sensação de estar em todo lugar e em lugar algum

A fisioterapeuta Lívia Fernandes relembra as formas e as pessoas que marcaram sua experiência em Bagdá

47° de sol e saudade: a sensação de estar em todo lugar e em lugar algum

Voltar de um projeto leva tempo. De alguma forma, você volta com várias cicatrizes, e elas vão melhorando com o tempo – e só com o tempo. São cicatrizes do que você viu, ouviu, viveu. Você volta com um corpo maior do que você tinha antes, e precisa se despir do que era antes pra continuar cabendo em si. E para se despir dessa antiga pessoa, você tem que se despedir dela primeiro: entender tudo o que você viveu, os lugares que você passou, as pessoas que você conheceu, as histórias, os cenários; acolher o que te cabe, deixar para fora o que não tem espaço. E crescer. Depois de 4 meses de volta, eu começo a entender como faz para viver dentro desse novo corpo, como ser essa nova pessoa.

Viver em um país com um histórico longo de guerras como o Iraque não me pareceu tão difícil enquanto eu estava lá. A vida era boa, as pessoas gentis. Mas as histórias: elas te rasgam devagarzinho. Cada um leva consigo uma memória, uma experiência, e a cidade também. Em todos os cantos existe alguma coisa que te faz pensar em conflito, desordem, dor. Viver em um país com um histórico longo de guerras como o Iraque te faz sentir dor de uma forma muito sutil, mas quase constante.

Em um centro de reabilitação como o Baghdad Medical Rehabilitation Center conheci muitas dores. Dores da guerra, antigas e recentes; dores no/do corpo; dores de familias; dores da perda; dores do medo; dores do futuro. Dores que, muitas vezes, não irão embora nunca. E talvez essa seja a energia que tanto te consome ao viver em um país assim: sendo fisioterapeuta, ver e conviver com pessoas que sentem dor vem acompanhado de uma vontade enorme de encontrar alguma forma de alívio. Mas como fazer isso com tantas barreiras? Muitas vezes acolher e estar ali, apenas, era uma das únicas coisas possíveis.

A fisioterapia no Iraque é uma profissão pouco reconhecida, pouco desenvolvida, pouco independente. Caminha com muletas, e ainda não tem força o suficiente pra arriscar passos sozinha. Trabalhar no BMRC coordenando uma equipe de 6 fisioterapeutas locais me fez entender que além de fortalecer nossos pacientes, eu precisava fortalecer os profissionais. Essa foi a parte mais difícil do meu projeto: chegar de um lugar para além-mar e aprender como aquelas pessoas ali construiam o raciocínio técnico deles e, depois disso, arranjar uma forma de deixar esse processo mais crítico, mais rico, mais robusto, com mais sentido. Achar, em meio a tantas histórias, e caos, e memórias, uma terra que pudesse comportar uma semente. E regar, em meio a hábitos, cultura, e rotina, pra que essa semente crescesse.

Um projeto de 7 meses me deu tempo de viver muitos altos e baixos. E nessa montanha russa, o modo como as relações se dão em um ambiente de ajuda-humanitária sempre me pareceu muito maluco: tem gente que chega e vai, tem gente que está ali de corpo, tem gente que se abre e se joga, tem gente que quer compartilhar muito. A diversidade de pessoas que cruzam seu caminho também te faz crescer. De repente, você sente que conhece muitos outros lugares do mundo além de onde você veio e de onde você está. Você se expande por meio dessas novas pessoas: carregando um pouco delas consigo, e elas carregando um pouco de você nelas. O mundo parece abraçável. Meus braços e o mundo: um.

Gosto de olhar pra essa vida que teve início há quase um ano atrás e entendê-la como uma ponte. Entender que países em reconstrução precisam de pontes: pontes largas pra conectá-los ao resto do mundo, pontes estreitas para conectá-los entre eles próprios, pontes firmes pra conectá-los com as informações atuais e a ciência, pontes altas para que eles enxerguem longe, pontes em queda para que eles organizem e construam suas próprias novas pontes. E entender também que todos aqueles que cruzaram meu caminho nesse período foram pontes.

Volto do Iraque agradecida, diferente, inteira. E maior.

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